postumária grevista
"Como já vimos, uma greve de motoristas de ônibus dura, no máximo, 48 horas - assim como uma greve de metroviários ou uma greve de garis. E é claro que eu estou falando de profissionais que lidam com um serviço essencial. Aí fica a pergunta: a educação não é um serviço essencial?", Ana Lucia Soutto Mayor, professora do CAp-UFRJ.
Por Elena Wesley e Gustavo Cunha
Contraste. Os argumentos contrários e favoráveis à greve se confrontaram na Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). As grades do portão – que servem de encosto a quem espera o ônibus na Rua Tiradentes – sustentavam cartazes com as mensagens de reivindicação: “Paralisação dos docentes” e “Por uma educação pública de qualidade”. De alguma forma, professores grevistas tentavam divulgar a mobilização que, embora tenha tomado proporções nunca vistas, demorou a chegar às bancas de jornal. Alguns degraus à frente, o discurso era outro. Nos corredores, as paredes serviam de mural à manifestação de um professor que enfatizava: “a greve é falsa, covarde e injusta”.
Na tarde de 17 de maio, no campus do Gragoatá, professores da UFF aprovaram a greve que já se estendia por outras 39 instituições federais de ensino do Brasil. Das mais de três mil pessoas que compõem o corpo docente da universidade, apenas 113 marcaram presença na Assembleia Geral da Associação dos Docentes (Aduff): 108 votaram a favor, uma se posicionou contra, e quatro preferiram se abster. Por democracia, estava decidido: paralisariam as aulas a partir do dia 22 daquele mês.
O professor Claudio Monteiro não estava presente, mas se sentiu praticamente ofendido com a decisão do coletivo. Como disse, não tardou a tomar as rédeas dos alunos. Alguns dias depois, espalhou um manifesto caloroso, de duas laudas, pelas paredes do Instituto de Economia, onde ministra aulas há mais de 30 anos. O título do artigo – Pobres Alunos – resume o conteúdo: para Monteiro, a greve é “falsa e injusta”, pois “prejudica apenas uma categoria, os estudantes”. “Todas as demais atividades dos professores continuam”, escreveu, ao se referir, por exemplo, ao prosseguimento das pesquisas e eventos acadêmicos. E protestou: “Qual a representatividade de uma assembleia de 113 professores (incluindo os aposentados) para decidir em nome de mais de 3000 professores como ocorreu na Assembleia da UFF?”.
Após enumerar uma série de prejuízos para os estudantes – dentre os quais “atrasos nas formaturas”, o que pode fazer com que “alunos percam empregos” –, o economista trouxe à tona uma rápida reflexão: como não existe empresário nem lucro para ser prejudicado, no setor público quem sofre é a “sociedade em geral e em particular os alunos da graduação”. Mas se os alunos não gostariam da interrupção das aulas, por que muitos se manifestaram a favor da paralisação, e até decretaram sua própria greve? “Na verdade, os diretórios acadêmicos são manipulados por partidos contrários ao governo”, respondeu ao telefone.

Cláudio Monteiro não é de todo avesso às reivindicações da categoria. Pelo contrário, afirma que as reclamações são condizentes: “os salários são baixos, e há muitas disparidades em relação a outros cargos do setor público”. Quando estudante, participou ativamente de um processo de greve – “mas o contexto era outro, lutávamos contra a ditadura”. “Hoje não há governo a ser derrubado”, complementou. Desta vez, mesmo sem concordar com o movimento, se viu obrigado a paralisar as atividades, já que não podia dar aulas sem alunos e funcionários. Mas uma questão não deixou de intrigar o professor: “Não vamos consertar tudo do nada e de uma só vez. Com o anúncio da greve dos professores, vários outros setores também paralisaram. Alguém em sã consciência acha que o governo vai dar aumento para todos?”, interrogou.
O esforço da categoria foi intenso: além do caráter lúdico das passeatas locais, os profissionais investiram em viagens à capital federal para exigir o diálogo. Contudo, a resposta desejada não veio. Com a ameaça de encerramento das negociações por parte do governo para três de agosto, as cinco instituições coordenadas pela Federação de Sindicatos de Professores de Instituições Federais do Ensino Superior (PROIFES) descartaram a liderança do Comando Nacional de Greve (CNG) e fecharam o acordo por conta própria. Com as forças reduzidas, o CNG não conseguiu retomar a conversa com o governo, e decidiu intensificar as discussões com a base por meio de assembleias locais. No dia 17 de setembro, após quatro meses de paralisação – estendidos pelo prazo final de reajustes no orçamento anual da União –, a articulação nacional optou pela volta às atividades, mas com a manutenção das reivindicações por outros métodos.

Para a professora de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio de Aplicação (CAp) da UFRJ Ana Lúcia Soutto Mayor, as propostas do governo estiveram longe de atender às reivindicações. Militante tradicional do movimento – desde que entrou para a escola, em 1989 – e participante recorrente nas assembleias da Ilha do Fundão, ela vê o tratamento do Estado como um total desrespeito à educação. E afirma, ao ratificar a não aceitação das mudanças empreendidas pelo governo: “Não podemos compactuar com um acordo, assinando em baixo o desrespeito consentido. Pior do que a violência em si, é a violência consentida”.
A defesa de uma política salarial coesa residiu no centro do conjunto de reivindicações do movimento grevista. O último reajuste salarial para professores federais aconteceu entre 2008 e 2010. Desde então, os docentes não viram novos números nas contas bancárias. Em 2011, um acordo com o governo estabeleceu – para março deste ano – um reajuste salarial de quatro por cento. A promessa se cumpriu, no entanto, com um mês de atraso, pouco antes da deflagração da greve, em maio.
Em nenhuma das mesas de negociação, o governo propôs planos de reajustes reais para professores de instituições federais. A justificativa oficial era a necessidade do corte de gastos diante do panorama de crise econômica mundial. A fim de extinguir o impasse, o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes) enviou ao Congresso Nacional uma contraproposta, no final de agosto, segundo a qual os professores abdicavam do reajuste salarial em favor da discussão pelo plano de carreira. Mesmo com os frequentes discursos do Ministério do Planejamento sobre a impossibilidade de atender às reivindicações, a capa de O Globo (13/08/12) logo sustentou: “Governo propõe reajuste de até 47,7% a professores federais”. O texto foi enfático nos números: “Ao longo dos próximos três anos, a remuneração do professor titular com dedicação exclusiva passará de R$ 11,8 mil para R$ 17,1 mil”. O repórter se esqueceu de dizer, porém, que apenas cinco por cento do total de docentes federais se enquadram na categoria “titulares”. Para professores com doutorado, o reajuste seria de 33%. Para aqueles com mestrado, os índices ficariam entre 25% e 27%. E mais: o aumento proposto seria “escalonado” – dividido num período de tempo de três anos.
Os supostos benefícios salariais desprezam não apenas as projeções inflacionárias de hoje a 2015, mas também os índices de oscilação reais entre 2010 e 2012 – calculados em 14,22%. De acordo com o professor Wagner Ferreira dos Santos, do Departamento de Matemática da Universidade Federal de Sergipe (UFS), a projeção de inflação de julho de 2012 a julho de 2015 é de, aproximadamente, 18%, com base no Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Para ele, o cálculo deixa claro que os ganhos não são reais, já que não acompanham as oscilações inflacionárias. “A manchete que deveria estampar a capa de todos os jornais, após uma reflexão sobre os dados, é: ‘Governo propõe redução salarial aos professores’”, escreveu.

As notícias divulgadas não deixaram de animar colegas e familiares dos profissionais. “Alguns amigos telefonaram para me parabenizar pelo aumento”, lembrou o professor de Comunicação da UFF Guilherme Nery. Mas outro fato havia sido omitido no papel. Como atentou Sylvia Moretzsohn, em artigo ao blog Cadernos de Reportagem, a proposta do governo embutia armadilhas no novo plano de carreiras: “Todos os novos professores, independente de sua titulação, ingressarão no nível mais baixo da carreira, como auxiliares, e não poderão mudar de classe enquanto estiverem em estágio probatório. Na prática, isso significa que aquele que já poderia estar recebendo como doutor ficará com remuneração inferior durante três anos”.
Ainda pelo novo modelo, os departamentos de cada curso perderiam a autonomia para decidir a progressão do docente de um nível para o outro, e o processo passaria a depender de aval do Ministério da Educação (MEC). “Ficaríamos reféns dos critérios de ‘produtivismo’ adotados pelo MEC, que mede a produção apenas por números – quando, na verdade, a produção inclui dar aula, orientar os alunos, fazer pesquisa. Ao invés da empresa privada aprender com os valores da universidade pública, eles querem pegar o valor da privada – com o trocadilho – e colocar na pública”, afirmou o professor Nery.
A insatisfação com as condições de trabalho foi igualmente influente na eclosão da greve. Professores, servidores e estudantes são unânimes: todos denunciam o Reuni como o fator preponderante para o sucateamento da universidade. Instituído como decreto em 2007 – mesmo após o protesto de estudantes que culminou em 16 reitorias ocupadas –, o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais previa a ampliação do acesso ao ensino superior com a abertura de mais vagas e a construção de novos campi. O investimento aconteceu. Porém, o aumento na quantidade de alunos não foi acompanhado pela contratação de professores e servidores técnico-administrativos de forma proporcional.
Na UFF, entre 1995 e 2010, o número de alunos matriculados saltou de 15.967 para 36.103, conforme dados da diretora da ADUFF Kátia Lima. O crescimento de 126,11% foi seguido pelo aumento de apenas 13,55% no número de docentes. “Foi um crescimento para menos. Mais campi foram abertos, mas continuamos sem água e sem papel higiênico”, opinou Guilherme Nery. O professor conta que no campus da UFF em Angra dos Reis, há dois cursos novos sem professores concursados. Todos são temporários. “O concursado é quem vai desenvolver pesquisa, implantar o departamento, ter vínculo com o curso. O temporário trabalha um ano, dá aula em vários lugares, e não cria raízes na universidade”, explicou.
Mesmo que incompatível com as necessidades geradas pelo Reuni, a entrada de professores novos nas instituições federais foi relativamente alta nos últimos anos. Em relação à UFF, de 2006 para 2010, enquanto 1.216 docentes eram nomeados, 1.454 deixavam a universidade. O saldo final, portanto, é pequeno. Mas para a professora Ana Lúcia, os recém-ingressos – “ao entrarem no bojo do Reuni” – tiveram papel primordial na construção do movimento grevista. “Eles se viram convocados a lutar pela não demolição da universidade pública brasileira – até porque pretendem ficar nela por muitos anos”, explicou. O resultado, segundo ela: “uma greve artística, criativa, com práticas políticas mais alegres e transgressoras”.
Pelas esquinas cariocas, logo se espalharam inúmeras intervenções. No mesmo dia em que foram divulgadas as primeiras propostas do governo, professores e estudantes da UFRJ se reuniram em Vila Isabel para cantar paródias de sambas clássicos de Noel Rosa, entre elas “Dona Dilma, faça o favor de me trazer depressa uma boa proposta que não seja requentada”. Território legal da universidade e ocupada pelos estudantes desde o final de julho, a antiga casa de shows Canecão se transformou em palco aberto para jovens bandas e artistas renomados, como Jards Macalé. As ações chegaram ao Guiness Book: na segunda semana de agosto, uma faixa de 34 metros de altura estendida sobre o Hospital Universitário do Fundão se impôs como a “maior faixa de greve do mundo”.
Estudantes não tardaram a aderir formalmente ao movimento. Entre algumas divergências, as federais de Seropédica (UFRRJ) e Ouro Preto (UFOP) assumiram a dianteira na declaração de greve estudantil. Em pouco tempo, alunos de outras 40 instituições do país – dentre as quais a UFF, – reforçaram a paralisação. Na UFRJ, cerca de dois mil estudantes se reuniram e declararam apoio aos docentes. Em junho, durante a Cúpula dos Povos – encontro da sociedade civil paralelo à Rio+20 –, formou-se o Comando Nacional de Greve Estudantil (CNGE), instalado posteriormente em Brasília.
Não foi para menos. Para os movimentos estudantis, mais prejudicial do que ficar sem aulas é assistir passivo, no dia-a-dia, à precarização do ensino público. Membro do Comando de Greve dos Estudantes, e envolvido com as causas dos discentes na Universidade Federal do Espírito Santo, o aluno de Comunicação Social Kauê Scarim explicou por que estudantes de todo o país apoiaram os profissionais da educação e organizaram uma pauta própria, que atendesse às suas particularidades. “É claro que ninguém deseja a paralisação das atividades, tampouco estudar no período de férias. Mas também não dá para estudar em uma universidade com tetos caindo, sem laboratórios e com falta de professores”.
De 2003 para 2011, o número de municípios atendidos por instituições de ensino superior passou de 114 para 237. A previsão para 2014 é de 63 unidades federais no país, em 272 municípios. Exaltadas pelo governo como sinônimo de notável avanço, todas as metas estão contidas no plano de expansão desenfreada do Reuni, que tem como principal característica a criação de núcleos universitários em cidades do interior.

Distante da administração, as filiais padecem o descaso, como bairros periféricos de grandes capitais. De 2010 para cá, o centro universitário da UFF em Campos dos Goytacazes, que até então abrigava unicamente o curso de Serviço Social, passou a acolher outros cinco: Ciências Sociais, Economia, Geografia, História e Psicologia. Segundo o aluno de Geografia Rafael Scheiner, o projeto de expansão inicial previa a construção de dois prédios, com sete andares cada. Porém, a obra está atrasada há cinco anos e, conforme material divulgado pela reitoria ao Comando de Greve dos Estudantes da UFF, a planta atual não possui mais o bandejão. Com a falta de salas de aula, a universidade “dá um jeitinho” por meio do aluguel de contêineres – apelidados de “módulos habitacionais” pela reitoria –, onde se encontra até mesmo o prédio administrativo. Scheiner questiona: “Por que não usar o dinheiro gasto com aluguel para a construção de um prédio de verdade?”.
Dos estudantes de Campos, 75% são de outras cidades. “São alunos que tentaram estudar na sede, em Niterói, mas não conseguiram”, esclareceu Lusiêr de Souza, estudante de Ciências Sociais. As dificuldades com a moradia e a inexistência de um restaurante universitário são determinantes para o elevado índice de evasão escolar no campus. A maioria passa um ou dois períodos no interior, e depois tenta transferência para as terras de Araribóia. “Para conseguir o auxílio-moradia, às vezes é preciso ir até Niterói para conversar com a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PROAES)”, frisou Rafael. Atrasos também são frequentes. Bruna Quinsan, caloura de Ciências Sociais, veio de São Paulo e há quatro meses não recebe o benefício.
Em 2010, com o boom do Reuni, um grupo de novos alunos – sem local para se estabelecer – ocupou um prédio abandonado próximo ao campus, coincidentemente batizado de Casarão. Durante um ano e meio, estudantes da UFF, do Instituto Federal Fluminense (IFF) e da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) compartilharam o primeiro andar do imóvel, entre goteiras e problemas de infiltração. Uma dos 12 contemplados – “sortudos”, em suas palavras – pela bolsa de auxílio-moradia no valor de duzentos reais, Franciane Vasconcelos, do curso de História, se hospedou por três dias no Casarão. Chegou de São Gonçalo apenas com a mochila nas costas, "sem ter lugar para ficar".
As aulas voltam em companhia da estrutura tão criticada pelos três movimentos de greve: funcionários do bandejão permanecem sobrecarregados com a quantidade crescente de alunos; a assistência estudantil se mantém insuficiente; professores se vêem obrigados a assumir muitas turmas, e sem tempo adequado para dedicação à pesquisa. De acordo com comunicado do Andes, os docentes pretendem continuar a luta "com o uso de novos instrumentos que assegurem principalmente a unidade do movimento". O desafio é grande.
O ministro da Educação Aloizio Mercadante já afirmou que a proposta aprovada pela Câmara dos Deputados em junho – que destina 10% do PIB para a educação – é uma tarefa política “difícil de ser executada”. Poucas semanas antes, o governo federal absolvia uma dívida de universidades privadas, calculada em 17 bilhões de reais. Em troca, as instituições deveriam oferecer bolsas de estudo gratuito, nos moldes do Programa Universidade para Todos (ProUni). Mais uma vez a velha filosofia apropriada com força pelo governo se exibia: mais fácil deixar os outros resolverem os nossos problemas. Menos dor de cabeça, menos remédio. Bem escreveu Claudio Monteiro, simples e certeiro: “pobres alunos”.
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