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SMH 2016

Obras do projeto Porto Maravilha e remoções compulsórias fazem moradores do Morro da Providência traduzirem o recado da  prefeitura: “Sem Moradia Habitável”


Por Camille Velloso, Fernanda Costantino e Gustavo Cunha


Para chegar à casa de Jailce Lima, é preciso subir a longa escadaria e as  estreitas ladeiras do Morro da Providência. Ainda mais cansativo sob o sol do  verão carioca, o caminho traz recompensas. Do alto do morro, considerado a primeira favela do Rio de Janeiro, é possível admirar parte da cidade, em visão  360°: a densidade de edifícios e construções do Centro chama atenção ao lado  de cartões-postais como o Sambódromo, a Ponte Rio-Niterói e o Corcovado. A poucos passos da Capela das Almas – pequeno oratório com mais de 110 anos  –, a casa e o pequeno comércio que Jailce mantém com o marido têm vista  preferencial. Mas desde que foram anunciadas as obras do projeto Porto Maravilha, a paisagem generosa transformou-se em maldição. Em 2011, em  uma cotidiana manhã de trabalho, o casal se deparou com três letras pichadas  na parede de casa. Apenas alguns dias depois, entenderam o significado da sigla “SMH”. Pela Secretaria Municipal de Habitação, estavam fadados a deixar o  local onde vivem há mais de 30 anos.

“Apenas marcaram”, queixou-se Jailce. Na Providência, os moradores precisaram questionar funcionários da Prefeitura para tomar conhecimento das transformações urbanas, iniciadas de um dia para outro. Em nenhum momento, as autoridades se reuniram com a comunidade para debater o projeto. Inevitável recordar os desalojamentos compulsórios em 1808, quando mais de duas mil habitações foram requisitadas para abrigar nobres europeus. “Casas confiscadas eram marcadas com PR (de ‘Príncipe Regente’). A população logo passou a traduzi-la por ‘Ponha-se na rua’ ou ‘Propriedade Roubada’”, escreveu o historiador Eduardo Bueno, em Brasil: Uma História – Cinco Séculos de um País em Construção.

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Mais de dois séculos depois, “a história se repete com um pontinho a mais”, como refletiu Ebenésio de Sousa Leite, mais conhecido pelo apelido Bené, morador do Morro da Providência há mais de 60 anos. Parte do projeto que prevê transformações significativas na região portuária do Rio – apresentadas como “revitalização” pela campanha publicitária –, o remodelamento urbano na comunidade, que hoje é tema de novela, tem objetivos bem definidos.

A área servirá de porta de entrada das Olimpíadas e da Copa para turistas de todo o mundo. No final de abril de 2010, a comunidade recebeu uma Unidade de Polícia Pacificadora, a sétima em todo o estado do Rio de Janeiro. Hoje, Jailce e outros moradores questionam: “esses benefícios são para quem?”. A comerciante enfatizou que o marido e alguns vizinhos ficaram deprimidos e doentes com a notícia de que deveriam deixar o lugar em que vivem há mais de três décadas. “Agora que foi pacificado e que a comunidade ficou boa, seremos removidos. Nós não queremos sair! Toda nossa família, nossa história, até  nosso sustento está aqui na Providência”.

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De acordo com dados da Secretaria Municipal de Habitação, mais de 600  habitações estão marcadas para remoção. Procurado mais de quatro vezes pelo CASARÃO, o órgão informou que todas as informações sobre a obra estão no site, e que as remoções acontecem por se tratar de uma área insalubre para  moradia e de alto risco ambiental. Apesar disso, ainda não foram feitos os  Estudos de Impacto Ambiental e de Impacto de Vizinhança na região. Ainda de acordo com a Secretaria, as análises sobre o local estão nas mãos da Defesa Civil.

As obras na Providência incluem a implantação de novas redes de água, esgoto e drenagem, a construção de uma creche, para 170 crianças, e um plano  inclinado, que vai ligar a Ladeira do Barroso, que dá acesso ao morro, à Praça  da Igreja do Cruzeiro, no ponto mais alto. Além disso, da Central do Brasil já é possível ver os traços do teleférico que atravessará a favela até a Cidade do  Samba, na Gamboa. Pelas estimativas do projeto, as cabines transportarão  cerca de mil pessoas por hora. A secretaria ainda informa no site que serão construídas “800 novas moradias, através do Programa Minha Casa, Minha  Vida, para reassentar famílias que vivem em áreas de risco na Providência e em comunidades do entorno”.

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Ao redor do Oratório centenário e da antiga Pedra dos Escravos, está prevista a  construção de um “Centro Histórico e Cultural” e de uma praça com  anfiteatro, “edificações destinadas ao comércio voltado para o turismo”, como  relatado na página virtual do órgão. Entre operários, no cenário empoeirado  das obras, já é possível perceber turistas curiosos na região.

Em novembro, a Defensoria Pública emitiu uma liminar reivindicando a  suspensão imediata das obras do Morar Carioca no Morro da Providência.  Segundo o órgão, pela legislação, é preciso haver estudos de impacto ambiental e de vizinhança, além de audiências públicas que incluam a população local na  formulação dos planos urbanos. “Faltou o direito de informação e participação  na intervenção”, explicou Adriana Britto, do Núcleo de Terras. Para a defensora, entender o impacto ambiental significa estudar aquilo que, de  alguma forma, afetará a vida da comunidade. “A natureza hoje é também o  modo de viver, o ambiente cultural”, enfatizou.

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O desrespeito à legislação fica ainda estampado nas demolições de construções  erguidas antes de 1937, o que não é permitido por lei. A defensora atentou que,  em termos jurídicos, ainda não ocorreram “remoções”, pois os  moradores que saíram entraram em acordo individual com a Prefeitura. Para  Bené, um dos poucos moradores recorrentes nas reuniões do Fórum  Comunitário do Porto (FCP) – articulação de resistência a tais transformações  –, a Prefeitura acaba “forçando a barra para a população deixar as casas”.

Criado em 2011, o Fórum conta com a participação de moradores,  representantes de associações culturais da região, movimentos sociais,  membros da academia, de mandatos parlamentares e de instituições de defesa  de direitos humanos. O grupo não possui financiamento nem é  institucionalizado, no entanto já tem somado vitórias e ganhos, como salienta Caroline Rodrigues, membro do FCP: “são ganhos imensuráveis, como o  conhecimento mais aprofundado sobre os nossos direitos”. O núcleo tornou a população mais consciente de seus direitos, o que possibilitou a maior  participação em debates e assembléias, como a de 2011, que acarretou na  permanência, por mais de um ano, de moradores que já seriam removidos.

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No entanto, ainda há dificuldades a vencer para garantir a permanência de  moradores como Jailce e Bené na zona portuária. Por isso, os moradores e demais associados ao FCP tem tomado mais iniciativas para tornar de  conhecimento geral o que acontece na área portuária. Situações como a do  morador que, em prol do turismo e do interesse econômico, “constrói a cidade olímpica e, contraditoriamente, vê a própria moradia subir de preço a tal  ponto que pode ter que deixá-la”, como enfatizou Caroline.

"A história se repete com um pontinho a mais"

Considerada a mais antiga favela do Rio de Janeiro, a Providência vive mais  uma vez a segregação entre asfalto e morro. Foi criada pelos moradores  expulsos dos sobrados do Centro do Rio na reforma de Pereira Passos, iniciada  em 1853. Em seguida, recebeu os soldados que voltavam da Guerra de  Canudos, e que passaram a chamar a área de Morro da Favela, por causa da  vegetação parecida com a planta de mesmo nome, típica da Caatinga. Com mais  de 110 anos de histórias e moradores ilustres, como Machado de Assis, o  Morro da Providência tenta hoje manter no lugar suas casas, gente e cultura.  Escrito em 1928 pelo compositor Sinhô, o samba “A favela vai abaixo”  mostrava o desagrado da população com o plano urbanístico traçado pelo  francês Alfred Agache, que previa a demolição de barracões.

“Vê agora a ingratidão da humanidade
O poder da flor somítica, amarela,
Que sem brilho vive pela cidade
Impondo o desabrigo ao nosso povo da Favela”

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