
Por Lucas Silva
Em 10 de junho, desço da barca e caminho até o terminal de ônibus da Praça XV, centro do Rio de Janeiro. Ao chegar, próximo à cabine do despachante, faces preocupadas e assustadas substituíam os risos oriundos de conversas, normalmente descontraídas, entre trocadores e motoristas das linhas de ônibus. Um estranhamento logo deu lugar a uma explicação lógica. Lembrei que estava marcado um ato contra o aumento das passagens, partindo da Candelária com um destino que até hoje não se sabe, naquele início de noite. De fato, com certeza haveria uma relação. Apenas mais uma manifestação, com talvez mil pessoas, que deve ter interditado o trânsito, irritando os rodoviários. Trechos da conversa confirmaram meus pensamentos. “Eles avisaram para que a gente não voltasse, se não iriam quebrar os ônibus”, disse um trocador, visivelmente nervoso. Não voltou. Uma mudança no itinerário, sem avisar aos “patrões”, foi prontamente acatada pelos passageiros. As imagens distorcidas das janelas passavam tão rápido quanto minhas ideias acerca do ocorrido. É justo, pensava. Assim as pessoas percebem.
Nos grandes jornais, impressos e televisivos, tudo o que eu havia pensado sobre o ocorrido se resumiu a apenas “mais um protesto que termina em vandalismo”. Os motivos, o por quê dos confrontos, dissolvidos em água, letras e imagens engolidoras de sentidos. Programas “jornalísticos” da tevê aberta cobriam a ação da polícia e não a manifestação. O ato, para a grande mídia, representava uma afronta aos direitos de “ir e vir”, um desrespeito ao patrimônio público e às autoridades. A polícia precisava agir.
Então, missão dada é missão cumprida, certo?! Em São Paulo, em mais uma manifestação organizada pelo MPL, a repórter da Folha, Giuliana Vallone, é atingida por bala de borracha, no olho, por um policial. De repente, os jornais passam a “enxergar”, inclusive melhor, novos pontos de vista com relação às reações desproporcionais e usuais da Polícia Militar. Pessoas discutindo nas ruas não mais os atos de vandalismo, mas o ataque policial e as propostas da manifestação.
No turbilhão de informações, ou desinformações, o grupo que organizava os movimentos no Rio de Janeiro, anuncia outra passeata, dia 17 de junho, pelo Facebook. Eu vou. Entretanto, antes disso, Niterói, dia 14. Helicópteros sobrevoando o centro da cidade. Arrepios nos braços e pernas. A manifestação corria devagar. Fui embora. Chego em casa, uma olhada de praxe no computador e mais agitação nas redes sociais do que na própria passeata.
Não lembro quase nada do ocorrido entre esses três dias. Rescaldos das manifestações organizadas pelo Movimento Passe Livre, em São Paulo, na televisão. E outras passeatas eclodindo ao redor do país. Ah, sim, havia começado a Copa da Confederações.
Quando, na quinta-feira, 17 de junho, chego à Candelária, talvez umas 500 pessoas. Sento na praça em frente à famosa igreja, cercado por estudantes que produziam seus cartazes. A PM observando, parecia ansiosa, como um time de futebol antes do início de uma partida. Isso vai ser grande, pensei. Era, definitivamente, um dia diferente, para entrar na história, pelo menos para mim. Para muitos dos envolvidos era só mais um dia de luta, de inúmeras outras que se sucedem sem que percebamos. Abre parênteses. Fiz uma reportagem, no começo do ano, sobre as remoções na comunidade da Vila Autódromo, em virtude das obras do Parque Olímpico. Uma das razões pelas quais resolvi estudar jornalismo foi minha paixão pelo esporte. Imagina cobrir uma Olimpíada e uma Copa do Mundo, com os atletas que admirava enquanto esportistas? Mas percebi que os megaeventos mexem com algo muito além dos estádios e arquibancadas. Os verdes dos gramados e das notas se confundem. Os moradores da Vila Autódromo, ainda hoje sofrem com as ameaças. Eles lutam, se manifestam, todos os dias. Fecha parêntese.
Depois dessa reflexão, olho ao redor, mais de 20 mil, sem dúvidas. Começa a caminhada. Junto de amigos, somos manifestantes, fotógrafos, repórteres. O grito de “desordem”, “vem pra rua”, ecoa pela Avenida Rio Branco. Mais arrepios como aquele. Talvez 60, 70 mil pessoas, contra o aumento. Contra Cabral, Paes, investimentos da Copa, remoções arbitrárias. A passeata dos cem mil. História. Na Cinelândia, princípio de tumulto. Na Alerj, tumulto. Corremos. No caminho, vidros estilhaçados, fogo em sacos de lixo, lixeiras no chão. Afinal de contas, o que é isso? Chegamos ao prédio da Assembleia Legislativa, um carro acaba de explodir. Lembro dos noticiários. Paris, Egito e Turquia. Uma revolução. Manifestantes correndo, policiais despreparados atirando como em uma guerra (ou favela), senti medo. Depois de um tempo, caminhei até um ponto próximo e entrei no ônibus. Sentei, um silêncio interno, não de incredulidade, mas de algo, talvez, eu não sei. Um sentimento natural, afinal, nunca havia participado de uma manifestação como essa.
O silêncio deu vez aos debates. Os movimentos continuam, respostas imediatas dos parlamentares provam a força de um movimento popular. Uma força que eles tinham esquecido, que alguns tinham esquecido, que eu tinha esquecido.
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