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A revolta será curtida e compartilhada

 Um relato sobre as manifestações em Niterói e no Rio de Janeiro - Junho de 2013

somos a rede social*Por Gabriela Vasconcellos

Quando assisti na televisão que as passagens subiriam novamente em junho deste ano, achei que já sabia o que aconteceria. Mais uma vez uma “dúzia de gatos pingados” organizaria uma manifestação em frente às barcas, cantariam gritos de ordem, segurariam cartazes e bandeiras de dois ou três partidos e buscariam apoio. Foi assim nos últimos aumentos, tanto de ônibus quanto de barcas. Foi assim também quando a proposta das Organizações Sociais foi votada na Câmara de Vereadores de Niterói. E eu estava lá, com mais alguns amigos e desconhecidos, mas sempre os mesmos conhecidos rostos, pouquíssimos lutando por todos.


Mas quando assisti – também na televisão - a onda de revoltas em São Paulo, quase entrei em êxtase. Sem dúvida o sonho de qualquer militante que vai pras ruas é ver o povo nelas, ocupando seu lugar, exigindo seus direitos. Em São Paulo, estava muito lindo. Apesar de toda a violência policial e tentativa por parte da mídia de deslegitimar o movimento, este ganhava cada vez mais força, cada vez mais adesão popular. Minha vontade imediata foi de sair correndo pra lá, pra ajudar na resistência de um povo que finalmente tinha acordado para os abusos fascistas do governador. Até que fui convidada para um evento no facebook: um ato aqui em Niterói, na minha pequena aldeia, tão conservadora, que carrega o título de cidade mais desigual do Brasil


A grande quantidade de pessoas confirmadas me assustou um pouco, e confesso que não levei muita fé. E qual foi minha surpresa quando me deparei com uma multidão antes inimaginável para a pequena Niterói? Era curiosa a quantidade de cartazes “saímos do facebook”, porque era verdade. Aquelas pessoas que sempre assistiram e se revoltavam via redes sociais estavam finalmente saindo às ruas.  Estariam elas deixando de lado o ativismo de sofá?!


Esse termo costuma ser rejeitado entre as rodas daqueles que acham que tem “carteirinhas” de militante. A verdade é que o ativismo de sofá pode ser um aliado muito importante, como se mostrou nessa onda de manifestações. Um dos movimentos que, em minha opinião, foi dos mais incríveis foi o Occupyque muito se utilizou das redes sociais. Era uma forma de convocação, de divulgação das atividades, de acumular pessoas, de espalhar o movimento pela rede e pelo mundo. E que deu certo. Se pra alguns era contraditório ver pessoas lutando contra o sistema com seus notebooks no colo durante o acampamento, pra mim – e outras centenas - o facebook tinha virado tática de guerrilha. A questão é saber que a ferramenta deve ser utilizada para colocar mais gente na rua, e não para que as pessoas se aprisionem cada vez mais em casa.


Nas manifestações pelo Brasil foi parecido. O facebook serviu para convocar, e por mais que existam críticas quanto a isso, o fato é que se a ideia era colocar uma multidão nas ruas, deu certo, até em Niterói.


                                                    Niterói – 14 de junho 


No primeiro ato, seguimos pela Avenida Amaral Peixoto, com gritos de ordem puxados pelo carro de som. Quando este se calava, parecia uma marcha fúnebre. Era como se aquelas pessoas precisassem de um controle, um pastor, alguém para guiar o que deveríamos falar. Continuamos andando até a Câmara de Vereadores de Niterói, e rapidamente tomamos conta do local. Pessoas subiram na estátua principal, arrancaram bandeiras, e gritávamos revoltados, contra a opressão de tantos anos. Mas o carro de som continuava em nossos ouvidos, tentando abafar as múltiplas e heterogêneas vozes, servindo de palanque para o “um ou outro” partido político lá presente. Eu estava na frente, e via meus amigos, e também desconhecidos querendo falar, tentando mobilizar as pessoas a voltarmos para o terminal, onde alcançaríamos a verdadeira massa que sofre com o transporte público cotidianamente. Mas alguns controlavam aquele carro, e só quem era de seus partidos podia pegar o microfone. Entoamos um grito de “não me representa”, e seguimos de volta para o terminal. Os manifestantes deixaram o carro de som pra trás, e cantamos, nos ouvindo, dando as mãos para conseguir passar com o sinal aberto, fazendo um cordão de pessoas que nunca tinham se visto na vida, mas estavam na mesma luta.


E assim chegamos ao terminal, onde ficamos gritando palavras de ordem para motoristas e cobradores que buzinavam demonstrando seu apoio, e balançavam a cabeça negativamente quando perguntados se seus salários tinham aumentado. De repente, um grupo de pessoas anunciou que o choque tinha chegado, e que teríamos cinco minutos para sair das ruas, e deixar o trânsito fluir. Alguns queriam resistir – acredito que pela emoção do momento, pelo desejo de continuar aquela manifestação, pela necessidade de desobedecer às ordens do Estado pelo menos uma vez na vida – mas a maioria deixou as ruas e dispersou.


Eu estava procurando meu grupo de amigos quando a primeira bomba de gás lacrimogêneo estourou. Embebi um pano de vinagre e passei no rosto, entregando em seguida para outras pessoas que estavam em volta. Quando finalmente abri os olhos, percebi que muitos manifestantes tinham corrido para dentro do terminal, e pensei: estão encurralados. Segundos depois o choque arremessou uma bomba dentro do terminal. Me desesperei pelos meus amigos, pelos passantes, que saíam do lugar esfregando o rosto com as mãos, jogando água, sem saber que isso piora o efeito do gás. Vi meu amigo reaparecer com um vidro de vinagre e sair jogando nas pessoas, sem nem explicar a razão, e vi os rostos de questionamento e indignação se transformarem em alívio e agradecimento em questão de segundos.


Éramos um grupo de 12 pessoas, mas estávamos perdidos. Eu e mais três decidimos ir embora para a Cantareira e tentar localizar os outros. Saímos do terminal e passamos em frente ao choque, segurando seus cachorros e prontos para jogar mais bombas ou spray de pimenta naquela população frágil e desarmada. Quando estávamos no caminho Niemeyer, percebemos que um carro do choque estava nos seguindo. Paramos e esperamos um grupo maior se aproximar.


Quando passamos pelos policiais, eles pediram que parássemos e revistaram meu amigo. A primeira pergunta foi: “vocês estavam naquela manifestação, não é?”. Imediatamente saquei meu celular e comecei a filmar a ação. Um dos policiais fez o mesmo e disse que também me filmaria. “Mas você está em serviço, eu não”, afirmei. “Não interessa, você tá me filmando eu vou filmar você também!”, foi o que ele me respondeu. Felizmente, tinha um advogado no grupo maior, e fomos liberados sem grandes problemas. Mas tenho uma sincera impressão que se tivéssemos continuado - só os quatro - terminaríamos a noite na delegacia. E essa era só mais uma prova do quão baixo os policiais escalados para reprimirem as manifestações em todo Brasil estavam jogando. E eu sabia que era só o começo.


                                                                   Rio de Janeiro, 17 de junho 


Dois dias depois fomos à manifestação no Rio. E do outro lado da poça eu sabia que seria diferente. Já tinha tido uma prévia na remoção da Aldeia Maracanã, e vi que lá o Choque não brincava de jogar bomba... Era quase guerra civil. Comprei máscara pra gás e óculos de proteção em uma loja de segurança do trabalho, e mais uma garrafa de vinagre. Andamos por três horas pela Avenida Rio Branco, e vibramos quando alguém gritou que éramos cem mil nas ruas.


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        Passeata dos 100 mil no Rio. Foto: João Paulo.


Vi pessoas entoando o hino do Brasil, com suas bandeiras enroladas no corpo como um manto, e me perguntei o porquê de tanto patriotismo. Será que aquelas pessoas entendem o que é “Ordem e Progresso”, escrito na bandeira que seguravam com tanto orgulho? Me recusei a cantar , e segui calada boa parte da passeata, porque os gritos de ordem caiam em esquecimento quando alguém puxava o hino nacional.


Então um grupo menor destacou-se das cem mil pessoas e seguimos em direção à ALERJ. Enquanto caminhávamos, vi pessoas tirando seus vinagres de dentro da mochila, e fiz o mesmo. Segui de mãos dadas com meu namorado e meus amigos e já começamos a ouvir o barulho de bomba e os gritos de “não corre!”, por parte dos que estavam na linha de frente. Eu estava tão revoltada que volta e meia tirava minha máscara do rosto para gritar, xingar, espernear contra toda aquela violência por parte dos policiais, quando vi um garoto sair carregado no colo, pois havia sido atingido por uma bala de fogo na perna.


Foi a vez que mais senti medo. Temi pela minha vida e pelas pessoas que estavam comigo. Sabia que o melhor a fazer era ir embora, mas eu sentia que aquela batalha também era minha. Por todos os absurdos que acontecem diariamente. Não apenas comigo, classe média, que “posso pagar os quarenta centavos a mais”. Minha revolta era por saber que a forma que a polícia estava agindo não era exceção. Muito pelo contrário, é como age diariamente nas favelas, a diferença é apenas o tipo de arma. Sabia que eu estava temendo pela minha vida daquela forma, mas era pela primeira vez, enquanto aqueles que são oprimidos provavelmente sentem isso todos os dias.


Continuamos na resistência, lutando pra respirar e não correr quando mais bombas estouravam, e era difícil registrar tudo que estava acontecendo. Colocaram fogo no carro ao meu lado, fizeram uma roda e dançaram. Os rostos dos policiais com um misto de ódio e medo. De repente, as bombas pararam, os sprays também, e só os manifestantes continuavam colocando fogo em lixo, fazendo barricadas e gritando, quase comemorando vitória, pois as armas da polícia tinham esgotado. A ALERJ estava tomada, os policias acuados, e nós, os manifestantes, nem sabíamos o que fazer.


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Eu e Bruno Franco, na passeata dos cem mil. Foto: João Paulo


Eu via toda aquela cena, todo aquele fogo, os bancos destruídos, sendo saqueados e eu me perguntava: “como as pessoas podem condenar isso?”. Como as pessoas podem chamar seus irmãos de luta de vândalos e questionar a quebra de impérios – como os bancos – quando tanta vida é tirada diariamente nas favelas? Como as pessoas se queixam de picharem prédios públicos quando centenas de pessoas foram obrigadas a deixar suas casas por conta dos megaeventos? Como poderíamos repreender aqueles que foram oprimidos a vida toda e, pela primeira vez, conseguiram espaço para expressar sua revolta? Eu tive a certeza de que vândalo é o Estado, e que você pode não concordar com a “violência” e os “atos de vandalismo”, mas é hipocrisia dizer que não os entende.


Mas é mentira se eu disser que formulei tudo isso enquanto ainda estava naquele cenário de guerra civil. Eu andei calada, olhando pra todos os lados, provavelmente com olhos arregalados, segurando forte a mão do meu namorado e sem acreditar que tudo aquilo finalmente estava acontecendo no meu país. Mas o pior foi chegar em casa e assistir a cobertura da mídia.


                                                    A cobertura midiática e a divisão do movimento


A grande mídia fazia questão de frisar que um “grupo pequeno de vândalos”, destoante da manifestação  estava destruindo a cidade, patrimônio público, e que o dinheiro da reconstrução sairia do bolso de todos nós. A necessidade de deixar claro que eram dois grupos diferentes, com objetivos diferentes e em protestos diferentes tinha, obviamente uma única razão: rachar o movimento.


Deixar o movimento pacífico e passivo ter força, agregar pessoas, enquanto aqueles considerados radicais, e depois denominados “punks” seriam cada vez mais afastados, xingados, condenados... Presos. Eu era uma das punks, então? Porque eu estava na ALERJ. Não coloquei fogo em nada, é verdade, mas fui uma das vozes que entoou todos aqueles gritos; uma das pessoas a fazer o cordão de resistência que barrou a PM; uma das vândalas que portava vinagre, máscara, óculos de proteção. E eu via que todo aquele discurso estava sendo comprado, na fala de manifestantes que são tão do povo quanto os “punks”, que querem as mesmas coisas que os “punks”, mas que não percebem quem é o verdadeiro vândalo da história.


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E quem reaparece nessa hora e demonstra seu papel fundamental? A internet. No facebook e no youtube conseguimos postar, acessar, curtir e compartilhar o outro lado. Mostrar o abuso das autoridades, a truculência policial, as injustiças. Contar nosso relato pessoal, ler o de pessoas que pensam como você, ou completamente diferente. E assim criou-se uma rede espontânea de mídia alternativa, como a Alternativa e a NINJA. E algumas pessoas começaram a entender que se elas queriam saber a verdade precisariam desligar a televisão e ligar o computador.


O facebook tem papel tão importante nessa onda de manifestações que ele chegou a ficar fora do ar por alguns minutos. E foi desesperador. Tenho certeza que muitos se perguntaram como saberiam as informações dos próximos atos sem ele. Mais do que isso, como se informariam sobre todas as manifestações pelo Brasil sem ele. Além disso, grupos foram organizados para ajudar o movimento, como o Habeas Corpus RJ, cujo objetivo era dar auxílio jurídico àqueles que fossem presos durante os atos.


                                                             "Cuidado, manobra á direita"


Mas nem tudo são flores e os protestos começaram a tomar rumos perigosos. O autoritarismo se faz muito presente nos gritos de “sem partido”. Pessoas começaram a ser agredidas simplesmente por carregarem as bandeiras em que acreditam. Não apenas de partidos, mas membros de movimentos antirracismo e homofobia foram agredidos e terminaram seu dia de manifestação no hospital – não por conta da polícia, mas dos próprios manifestantes! – feridos, humilhados. Os cantos patriotas ganham cada vez mais força. Os gritos de “sem vandalismo” ficam cada vez mais altos. Pessoas entregam flores para policiais militares, os mesmos que massacram índios, negros e pobres desde sempre. E eu me pergunto se esse protesto é pela pátria, ou se é pelo povo. Porque se for a segunda opção, estamos fazendo alguma coisa muito errada.


Prova disso foi o que aconteceu na Maré, quando dez pessoas foram brutalmente assassinadas. No meio da onda de manifestações, o que poderia ter acontecido? Mais revolta, pelo menos um milhão de pessoas nas ruas, pedidos pelo fim da PM, pelo desarmamento da polícia, pelas vidas de todos, e não só dos filhos da classe média. Mas o que de fato aconteceu? Uma manifestação esvaziada – 5 mil pessoas, convenhamos, passa a ser uma miséria se compararmos com as 300 mil do último ato -  feita, boa parte, pelos mesmos rostos, as mesmas ONGs, as mesmas pessoas tão criminalizadas quanto os dez mortos. Não vou entrar a fundo na questão da criminalização da pobreza, no papel da classe média na legitimação de tudo que acontece, pois existem artigos muito melhores, como este de Eliane Brum. Mas o que aconteceu na Maré, da forma que aconteceu e, principalmente, quando aconteceu, me fez questionar no que esses atos se transformaram. É apenas uma marcha vazia contra a corrupção, pela paz, e contra tudo e todos?


Provavelmente, só vamos ter as respostas daqui a dez anos, em algum livro de história. Mas tenho medo do que meus filhos vão ler sobre as manifestações de que participei. Será que eles vão sentir orgulho ou a mesma vergonha que sinto ao estudar a  “Marcha pela Família com Deus pela Liberdade”?


Espero que as manifestações façam um contorno e encontrem um rumo melhor do que este que estão tomando. Porque vai ser triste demais saber que um movimento que tinha tudo pra ser tão bonito e ter tantos resultados foi desperdiçado por conta de tanta ignorância, olhos fechados, ouvidos tapados e discursos deturpados.


* Gabriela Vasconcellos é aluna de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense

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