Por Wesley Prado*
Juno, a deusa romana da força vital, da existência, desconfia que seu marido Júpiter tenha uma amante. De fato, ele tem, é a Io. Com medo que sua amante seja descoberta e condenada pela fúria opressora de Juno, Júpiter a transforma em uma novilha. Juno acha estranho e pede o animal de presente. Sem querer negar um presente tão insignificante, Júpiter entrega sua amada, que é colocada por sua mulher sob os cuidados de Argos Panoptes, um monstro de cem olhos, que nunca fechava mais que cinquenta deles para dormir. Perturbado pelo sofrimento da amante, Júpiter pede a Mercúrio que mate Argos. Contando histórias intermináveis, Mercúrio faz com que o monstro se renda ao cansaço e feche todos os olhos. Depois, corta sua cabeça, cessando assim a eterna vigilância.
No calendário gregoriano, adotado pelo Brasil, o mês de junho é derivado da deusa Juno. É o mês que dá início ao inverno do Hemisfério Sul. Coincidentemente, foi nesse mesmo mês que, em 2013, o Brasil contrariou o frio austral e questionou a atuação de um Estado que, como Juno, tem o poder de decidir quem vive e quem morre, de ter sob controle monstros que observa cada passo dado. Junho mostrou que a vigilância comandada pelo opressor pode ser enfrentada e abalada.
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Quando as leis agridem, a desobediência e o caos tornam-se uma obrigação civil. É dizer não à voz que grita ordens infundadas, é recusar-se a sair das ruas quando o Estado armado manda, é assumir seu papel de cidadão e ocupar espaços tidos como públicos e privados, é peitar a autoridade policial com câmeras e blocos de papel, que o povo brasileiro tem enfrentado o seu Argos. O conceito moderno de nação criado por homens, que supostamente deveria proteger seus cidadãos, mostra que cada vez mais é uma ferramenta que monopoliza a força e a violência.
Dizem que um dos deveres do Estado é promover a igualdade entre os homens. Mas e a correlação injusta de forças que há entre a polícia fortemente armada e os civis proibidos de se armarem? E o dinheiro público gasto com reformas desnecessárias, as bombas de gás sem licitação e com dobro de potência, a compra de helicópteros com dinheiro público para vôos pessoais, a sonegação de impostos de empresas privadas, a renovação de concessões para uma mesma empresa por longos períodos, ainda que essa empresa não ofereça um serviço de qualidade, o investimento privado em campanhas político-partidárias, as remoções de minorias historicamente oprimidas, o remodelamento privado da cidade, os inúmeros benefícios dos mandatos, a cura gay...? e o ar que me faltou para continuar, tirado de mim pela fumaça suja dos ônibus de empresas aproveitadoras?
Vivemos numa sociedade construída para sufocar, onde o oxigênio é oferecido em pequenas doses, não para matar, mas criar a falsa sensação que dependemos de aprovação para respirar. Num país no qual a ordem e o progresso, crias do positivismo, ainda são palavras de ordem. Num estado límbico, da eterna espera pela qualidade de vida. Num Estado que mata mais do que faz viver, que terceiriza monstros para nos vigiar, nos punir. Mas o que os governantes não esperam é que quando o ar é muito pouco, o mexer das pernas é automático.
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Junho reuniu numa mesma rua, pés já calejados e solas ainda virgens de luta. Trouxe à tona décadas de raiva e o rancor de uma sociedade doente, cujo mal foi injetado, não se desenvolveu naturalmente. Abalar a ordem causa medo. Vimos isso na voz tremula de alguns governantes (como a do governador do Rio, Sérgio Cabral), no discurso greco-troiano da mídia corporativa, na classe média de rostos pintados e comportamento moralista. Ora, que mudança é essa que deve ser pautada no respeito à ordem estabelecida? O status quo é o trunfo do opressor, dos súditos tributários, dos barões de terras. O império vê seu declínio quando os pontos isolados se convertem em núcleos organizados, quando os bárbaros subestimados se reúnem, quando a vigilância é ferramenta de todos.
Junho de 2013 foi o mês que deixou pra história mais um exemplo da força da mobilização social. O monstro que nunca dorme sofreu um pancada estonteante. Se veremos sua cabeça cortada como a do Luis absolutista, não sei dizer. Mas, certamente, os cem olhos da vigilância opressora viram o poder que milhões de pés ágeis podem ter ao caminhar juntos.
*Wesley Prado é estudante de jornalismo da Universidade Federal Fluminense. Fotógrafo freelancer e membro fundador da produtora de vídeos Caqui Filmes. Atua também na coordenação coletiva de produtos audiovisuais da rede de comunicadores independentes Alternativa.
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