Navigation Menu

Planejamento segregado

O que as políticas públicas de habitação do final do século XIX têm haver com as atuais? Foi com essa questão que Paula de Paiva Paulo, recém-formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense, realizou seu livro-reportagem "Do “Ponha-se na Rua” ao “Sai Do Morro hoje”. O tema habitação despertou na jornalista o interesse pelo que estava acontecendo na cidade e como os planos de moradia são desenvolvidos hoje.

Com o resgate histórico e as visitas aos atuais locais de remoção, Paula concluiu que os dois casos “seguem a mesma lógica de privilegiar a especulação imobiliária em vez do direito à moradia, e realocar os mais pobres da cidade para dar lugar ao capital”. Entre tantos pontos que hoje sofrem com as realocações, a jornalista deu foco, em seu livro, às comunidades de Restinga, Mangueira e Vila Autódromo. Para Paula, ainda é difícil prever a herança que a Copa do Mundo e as Olimpíadas irão deixar para a cidade, mas o que se percebe é um reforço de problemas históricos de desigualdade e segregação.

“A minha percepção é que estamos andando para trás. Após 25 anos da Constituição de 88, de mais de dez anos do Estatuto das Cidades, já era para algo ter saído do papel. Até os anos 80, era imperativa a ideia da remoção total das favelas como solução para as cidades. Hoje já se fala e se aplica a urbanização de favelas, para integrá-las as cidades. Isso é uma evolução, mas justamente por isso, as remoções estão mais mascaradas”, conclui.

[caption id="attachment_449" align="aligncenter" width="470"]Fotos Renan Otto Foto Renan Otto[/caption]

- O que te motivou a fazer o livro-reportagem e como você começou a realizar o trabalho de pesquisa e apuração? 

Tenho interesse pelo tema da habitação já há bastante tempo. Na UFF, meus trabalhos e disciplinas acabavam contemplando o tema. No segundo semestre de 2010, em trabalho para o projeto “Universidade no Ar”, da professora Ana Baum, produzi, junto com os colegas Luciano Ratamero, Anabel Moutinho e Ana Paula Abreu, uma reportagem de rádio sobre a ocupação urbana Manoel Congo, localizada na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro.

Quando comecei a pensar sobre o tema da minha monografia, não foi difícil. Decidi: a questão da moradia. Escolhi um escopo de trabalho enorme e depois vi que precisava de um recorte. A participação no Comitê Popular Rio para Copa e Olimpíadas - organização civil que reúne representantes de ONGs, movimentos sociais, estudantes e qualquer pessoa que queira discutir e pesquisar sobre as violações de Direitos Humanos que estão acontecendo para a preparação para os megaeventos no Rio de Janeiro - trouxe o foco que eu buscava. Ao entrar em contato com os moradores de comunidades ameaçadas, como Arroio Pavuna e Vila Autódromo, achei o meu gancho. O meu trabalho seria uma grande reportagem sobre as remoções que estavam acontecendo em razão da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas em 2016.

Encontrado o recorte, decidi fazer um resgate histórico das principais políticas públicas de habitação efetuadas desde o final do século XIX. Achava importante localizar os acontecimentos de hoje em dia dentro de uma perspectiva maior de tempo, para entendê-los melhor. Para essa parte, recorri a uma bibliografia recomendada desde minha orientadora, Sylvia Moretzsohn, até alguns amigos urbanistas do comitê. Já para a parte das remoções atuais, visitei os lugares, fiz entrevistas presenciais, busquei um posicionamento oficial - por parte do governo - e entrevistei especialistas no assunto, como a relatora da ONU para Moradia Adequada, Raquel Rolnik.

- No livro, você faz um relato histórico sobre outras remoções que a cidade já sofreu há anos atrás. Como essas antigas remoções estão relacionadas às atuais? Qual sua percepção sobre esse retorno na história da cidade do Rio?

Essas remoções estão relacionadas às atuais porque, de alguma forma, seguem a mesma lógica, a de privilegiar a especulação imobiliária em vez do direito à moradia. A lógica de realocar os mais pobres da cidade para dar lugar ao capital. É claro que guardadas as suas devidas proporções.

A minha percepção é que estamos andando para trás. Após 25 anos da Constituição de 88, de mais de dez anos do Estatuto das Cidades, já era para algo ter saído do papel e ter sido aplicado na prática. Até os anos 80, era imperativa a ideia da remoção total das favelas como solução para as cidades. Hoje já se fala e já se aplica a urbanização de favelas, para integrá-las as cidades. Isso é uma evolução, mas justamente por isso, as remoções estão mais mascaradas. Estão acontecendo com a justificativa da urgência dos megaeventos e com uma paixão nacional como bandeira.

- Você realizou o acompanhamento das comunidades de Restinga, Mangueira e Vila Autódromo. Podia dar um panorama de cada uma delas e em quais pontos são parecidas? 

Restinga - No início de 2010 os moradores tiveram informações desencontradas, alguns souberam que teriam que ser removidos pela imprensa, antes mesmo de serem notificados oficialmente. A falta de informação não só em relação aos moradores – critérios de indenização, situação fundiária de cada um – como também em relação ao projeto da Prefeitura para a área que seria removida, fizeram com que a Defensoria Pública entrasse com uma ação civil pública, baseada no argumento da “gestão democrática da cidade”, presente no Estatuto das Cidades. A ação requeria o projeto da prefeitura para a região. A ação teve vários reveses. A Defensoria conseguiu, ao mesmo tempo, liminares que impediam as demolições na Restinga, Vila Recreio II e Vila Harmonia, todas no Recreio dos Bandeirantes. Com isso, as obras da Transoeste ficaram paradas por um mês, em novembro de 2010. A liminar caiu, e no dia seguinte o aparato da prefeitura estava lá para realizar a remoção, sem aviso prévio. O dia da remoção, 17 de dezembro de 2010, uma sexta-feira, contou com cinco microônibus da Guarda Municipal, três microônibus da Polícia Militar, aproximadamente seis viaturas da Polícia Civil, além do Batalhão de Choque. Parte dos moradores recebeu os cheques com as indenizações no mínimo três dias depois, na segunda-feira, outros foram para a casa do MCMV, e outros ficaram sem nenhuma compensação.

Metrô-Mangueira - Tinha aproximadamente 700 famílias, já foi completamente removida. A comunidade do Metrô-Mangueira tinha 33 anos, o tempo de vida do metrô. Os operários que há 30 anos ajudaram na construção da estação fizeram suas casas no entorno.Ao andar lá hoje, o que se vê são ruas e becos aparentemente abandonados, cheios de lixo, com esgoto a céu aberto, e casas demolidas, algumas parcial e outras totalmente. Misturados ao entulho estão roupas, eletrodomésticos, tênis, cômodas e até sofás. Em 2010, cem famílias foram para a casa oferecida em Cosmos, a 60 km da comunidade. Após as primeiras saídas de moradores, as antigas casas ou escombros de casas passaram a ser invadidas por usuários de crack, o que, segundo os moradores, não existia antes na comunidade. Além disso, passaram a ocorrer assaltos e furtos nas casas de moradores que ainda moravam no Metrô- Mangueira, nos momentos em que estavam fora de casa. De acordo com Francicleide Souza, presidente da associação de moradores, com a resistência dos outros moradores em irem para Cosmos, dois prédios que estavam em construção da Caixa Econômica foram negociados pela prefeitura e destinados ao reassentamento dos moradores, no Programa Minha Casa Minha Vida. Os edifícios foram chamados de Mangueira I e Mangueira II, e estão localizados na Rua Visconde de Niterói, uma rua após o Metrô-Mangueira. Cada prédio tem 248 apartamentos. A ida de 248 famílias para o Mangueira I ocorreu em fevereiro de 2011. O segundo sorteio, para o Mangueira II, aconteceu apenas em dezembro de 2012.

Vila Autódromo - Tem aproximadamente 500 famílias e uma história de mais de 20 anos de resistência à remoção. O projeto da prefeitura é de remover a comunidade integralmente. Segundo a moradora Inalva Mendes, 67, a comunidade já recebeu sete justificativas para a sua remoção. A primeira foi em 1993, quando a Prefeitura do Rio de Janeiro entrou com um processo contra a Vila Autódromo por dano ao ambiente natural, urbano, estético e visual. Em março de 2012, a Prefeitura apresentou o sétimo argumento para a remoção. Para realizar a licitação da concessão pública do Parque Olímpico, que cede 75% dos 1,18 milhão de metros quadrados de área pública para a incorporação de condomínios de alta renda, o governo municipal alegou que a Vila Autódromo precisava ser removida para a construção de uma alça viária na Transolímpica. No projeto inicialmente apresentado, essa alça não existia. Algum tempo depois, outro projeto foi apresentado, desta vez com uma alça que passa exatamente em cima da Vila Autódromo. Em novembro de 2012, o prefeito Eduardo Paes apresentou o Parque Olímpico, e a alça viária não existe mais. Após sete argumentos derrubados para a remoção da comunidade, surgiu um oitavo, que é o que vigora até agora. No novo Plano Estrutural do Parque Olímpico, a Vila Autódromo abriga o Centro de Mídia (MPC), estacionamentos e estruturas provisórias da organização dos Jogos.

Em comum entre as três é o processo de remoção no geral: falta de informação relativa ao projeto, falta de participação durante as remoções, oferecimento de alternativas desinteressantes para as famílias e truculência policial no ato da remoção. Esta última característica fica de fora no caso da Vila Autódromo, que ainda não foi removida.
- O que a Copa e as Olimpíadas trouxeram para o Rio? Qual a herança que esses eventos vão deixar para a cidade?

Acho que ainda não dá para fazer uma análise muito definitiva, acho que ainda tem muito por acontecer. Mas do jeito que as coisas estão indo, esses megaeventos só estão reforçando problemas históricos de desigualdade e segregação na cidade.

0 comentários: