Por Bianca Alcaraz e Luciana Maline
Sentadas frente à TV, protagonizando uma cena que poderia ser real, três gerações se exprimem em um mesmo sofá: avó, mãe e neta. Na tela, o filme “O sorriso de Mona Lisa” ganha o posto de pivô do debate. Estampados nas caras, caretas e discursos, os confrontos de cada geração se revelam em meio às cenas do filme americano que recria a atmosfera do anos 1950. O enredo? Uma professora prafrentex que modifica a ordem de um colégio feminino tradicional que prepara jovens para um perfil adequado de uma “moça de família”.
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Cena do filme "O sorriso de Mona Lisa". Foto: Divulgação |
Na extrema direita, a avó, nascida aos redores dos anos 1930, faz ode aos hábitos do casamento do seu tempo. Para a senhora, fruto da ideia de família composta pela ascensão da burguesia, a grande conquista era se fazer uma boa esposa; um comportamento polido de hábitos majoritariamente caseiros, a escolha de um ótimo marido (antes determinado por acordos entre famílias) e, para distração, a boa prática de leitura, iniciada com os folhetins aos fins dos jornais, que originaram as novelas que até hoje são paixão nacional.
A mãe, ao centro, veio ao mundo nos anos 1960, década que deu a luz à pílula anticoncepcional e, com ela, a possibilidade da mulher ter vida sexual sem o único fim de procriação . Um golpe na honra da sociedade brasileira patriarcal. Principalmente em tempos em que a liberdade era calada por forte censura política, quando a ideia de família tradicional era valorizada pelo Estado, que cultivava o clichê do chefe másculo, capitalista e bem empregado. Em contrapartida, minorias à margem do sistema ganhavam corpo e força; movimentos estudantis, artísticos, hippies e feministas ganhavam a cena na mentalidade jovem que, posteriormente, virou a mandachuva de sua geração. A super mulher mostra os músculos do braço para enlaçar os ideais de Leila Diniz e aplaudir de pé o episódio da Rita Lee em que, vestida de noiva grávida, subiu ao palco do Festival da Canção com seu Mutantes, em 1969.
Os anos 80 entram com cheiro de liberdade e os avanços da mulher não se restringem nem mesmo pela descoberta do HIV. Ainda que em conta-gotas, a liberdade sexual feminina vai se distanciando cada vez mais do ideal de procriação e o destino certo do altar e dos bolos com noivinhos no topo se relativizam com a praxe do divórcio. A família se relativiza; a mulher assume a posição de chefe, entra de cabeça no mercado de trabalho e tenta driblar com categoria a inflação que tomou conta do final dos anos 1980 e início dos 1990.
Na esquerda, a atenção à TV em frente é divida com o foco no smartphone das mãos. A mais jovenzinha é fruto do século 21, quando a troca de informação entre povos ganha um gás a mais após a internet de uso mais cotidiano, e a cultura traz à mente humana a possibilidade da formação de uma nova estrutura familiar como meta, irrestrita a padrões e mais próxima das novas demandas sociais, sejam em famílias de mães solteiras, divorciadas, casais gays, ou até mulheres que querem seguir sozinhas, com um amor em cada porto.
Ela é da geração que viu a criação da lei Maria da Penha, em 2006, confirma no Facebook a presença em eventos como a Marcha das Vadias, as Manifestações de Junho de 2013, baixa o Tinder, um aplicativo de paquera para escolher novos namorados, ou apenas ficantes de uma noite, sem culpa. Usa roupa curta e grita “agora eu sou solteira e ninguém vai me segurar”, no refrão da canção da funkeira Valesca Popozuda.
Com o binóculo para o processo como um todo, até parece que as mulheres ganharam a voz devida e o equilíbrio social entre gêneros tão batalhado. Não, os relatos diários de casos de estupro ainda ganham páginas nos jornais, e os constantes gritos de “gostosa” ainda ecoam em cada esquina. Ainda assim, a população ainda se assusta com a queda de máscaras extremas, como fez o Ipea, que divulgou, no final de março de 2014, o resultado de sua pesquisa sobre os limites da tolerância sexual à violência contra a mulher em território nacional.
Entre 3.809 casas visitadas no período de março e junho de 2013, 26% dos entrevistados admitiram concordar com a premissa de que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas” e 58,5%, com a frase “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”.
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Dados levantados pela pesquisa realizada pelo Ipea. Fonte: Ipea |
No primeiro momento de divulgação, entretanto, os percentuais vieram trocados para primeira questão, apresentando um percentual der 65% de concordância com a relação entre roupas curtas e o ataque à mulheres. Não tão alarmante, porém, ainda muito significativo, o número deu margem a diversas formas de protesto. O que mais chamou a atenção foi o “Eu não mereço estuprada”, movimento criado pela brasiliense Nana Queiroz que utilizou o Facebook para divulgar uma foto nua com a frase homônima ao movimento estampada no corpo. Na rede, a jornalista teve a adesão de diversas pessoas, que reproduziram a ação, e em poucos dias, a foto já ultrapassava a marca de 40 mil curtidas.
As novas conquistas femininas também aparecem refletidas nas páginas da Constituição Federal de 1988, a mais recente. Se na vida homens e mulheres ainda apresentam pesos distintos na balança, ao menos na lei, há a promessa de igualdade.
“A grande proteção trazida pela Constituição Federal de 1988 foi a inclusão da igualdade entre homens e mulheres, na forma da Lei, no rol de direitos fundamentais. Isso se reflete nas alterações posteriores de toda a legislação em diversas áreas, seja no direito de família, do trabalho e penal”, relata o advogado e pesquisador na área de direitos humanos, Luiz Fillipe Maline.
Entre os destaques, o advogado assinala a importância da mulher na nova dinâmica da família: “A ausência de hierarquia entre gêneros no âmbito da família faz com que o tradicional pátrio poder, que é, em termos gerais, a atividade de educar e cuidar de uma criança, seja trazido sobre a forma de poder familiar. Agora, ele é exercido tanto pelo pai quanto pela mãe, sem prevalência em hipótese alguma”.
Nas manchetes dos jornais e nos relatos cotidianos, entretanto, a ideia propagada pela lei não enche os olhos e nem a boca do povo. Sobre a distância entre a teoria presente nas decisões dos congressistas e a prática, Luiz Fillipe defende: “O grande problema da proteção aos direitos da mulher é a efetivação e a elaboração de políticas públicas de acordo com os direitos garantidos. Ou seja, há previsão de meios de solução dos problemas da mulher em nossa sociedade, mas, ainda assim, se a teoria não for implementada na prática não traz os efeitos propostos. De lei, temos muitas, falta somente efetivar”, ratificou.
Em meio às sombras que ainda contornam a sociedade brasileira patriarcal, religiosa e rural que já anunciava Gilberto Freyre, em seu Casa Grande e Senzala, de 1930, a digressão tem ainda mais a sua função. O machismo das raízes nacionais ainda existe, sim, mas deve-se admitir: de pouquinho em pouquinho o espaço da mulher deve ser conquistado, na voz mansa e maternal ou no grito.
A opinião delas
O que duas personagens, de gerações distintas, mas que têm em comum a força no desejo pela própria voz, pensam sobre o assunto? Saiba mais sobre essas mulheres:
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Mariana Gelais, 21 anos. Foto: Arquivo pessoal |
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Roseli de Araújo, 50 anos. Foto: Arquivo pessoal |
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