Por Francielly Baliana
Mais que cariocas, mareenses. É assim que muitos dos mais de 130 mil moradores do conjunto de favelas da Maré assumem sua identidade. Localizada entre a Avenida Brasil e a Linha Vermelha, a comunidade traz consigo um histórico de militância no que se refere à educação. A luta acontece quando as limitações entre regiões periféricas e centro são compreendidas pelos moradores não apenas como questões espaciais, mas referentes, principalmente, aos investimentos feitos em maior escala aqui e em mínima ali, que dão oportunidades desiguais para pessoas com os mesmos direitos.
A jornalista e atual doutoranda da Escola de Comunicação da UFRJ, Renata Souza, cria da Maré há 31 anos, foi a primeira em sua família a ingressar no Ensino Superior. Ela é um exemplo de militância na região. Mesmo após se formar, continuou morando na comunidade por acreditar que apenas assim poderia contribuir para mudanças efetivas no local. Foram muitas as dificuldades, mas o contato com o mundo dentro e fora do bairro lhe abriu portas para acreditar em novas possibilidades para o seu futuro e o do lugar onde nasceu.
“Minha perspectiva de vida até os 16 anos era a de terminar o Segundo Grau, arrumar um bom emprego, casar e ser feliz. Não havia referências na família de pessoas que chegaram ao Ensino Superior. Essa era uma realidade muito distante. Foi quando comecei a fazer um curso de teatro que abriu as portas do mundo para mim. Percebi que o leque de oportunidades e possibilidades era maior do que o que eu havia experimentado até então”, comentou.
No curso de teatro, Renata realizou um teste vocacional que acabou ditando seus rumos para o jornalismo. Ela, que dizia não acreditar na carreira e na forma como a mídia apresentava a realidade da favela, começou a se interessar pela profissão e entender que havia, sim, possibilidade de imprimir um olhar crítico sobre os fatos. Ninguém melhor que um morador para retratar partes de seu cotidiano que não estão nos veículos tradicionais.
Renata cursou o pré-vestibular no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré – CEASM, uma Organização Não-Governamental que promove uma série de projetos voltados para as 16 comunidades do conjunto. Seus principais objetivos estão relacionados à valorização das favelas e bairros populares como expressão do espaço plural das cidades, e à potencialização do acesso dos moradores a bens sociais, culturais e econômicos, por meio de mecanismos de afirmação de direitos.
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“Entrei na PUC-Rio em 2003, já na terceira tentativa de passar no vestibular, iria desistir caso não conseguisse naquele ano. A cada reprovação, sentia que o Ensino Superior não era coisa para mim, que seria incapaz de passar naquela dolorosa peneira”, afirmou. No entanto, quando finalmente iniciou a graduação, contou já estar com sua identidade delineada, sabendo onde estava pisando e o que procurava naquele curso. “Esses posicionamentos foram definidos no próprio pré-vestibular, que nos fornecia um olhar crítico sobre a realidade e o nosso papel na sociedade”, disse.
As dificuldades que Renata enfrentou não foram apenas relativas ao ingresso no Ensino Superior. Também existe uma problemática muito grande quando se trata de compreender a importância de uma educação continuada, que vai desde um ensino básico até uma graduação de qualidade, reflexo de uma fissura existente nas políticas públicas em regiões menos favorecidas social e economicamente. Quem alerta para isso é o jornalista e especialista em Educação pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Antonio Gois. Ele afirma que os moradores de comunidades enfrentam sérios desafios quando se trata de educação básica.
“A favela é geralmente associada à pobreza. Essa é uma desvantagem muito grande no acesso a estudos de qualidade. As escolas em que os moradores de periferia estudam são também as mais pobres em termos de infraestrutura. Isso dificulta o aprendizado e uma compreensão de mundo”, comenta. Além da pobreza, que já tem um efeito por si só, para Antonio, há um estigma da favela, que se retroalimenta desde a infância.
Antonio também cita o quanto a violência existente na rotina de muitos desses estudantes tem reflexo direto em seus resultados na escola. “A Fundação Getúlio Vargas realizou uma série de estudos que media o impacto da violência na nota e no desempenho de alunos moradores de comunidades. Em anos em que ocorria a guerra do tráfico, o desempenho dos alunos caía. Os professores faltavam mais e a escola ficava fechada. Isso mostra o quanto a violência também gera muitas consequências”, disse.
É essa perspectiva limitada, carregada por jovens de comunidades, que o grupo de estudos “Juventude: Políticas Públicas, Processos Sociais e Educação", da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), propôs-se a analisar. Fernando Stern, pesquisador do grupo, acredita que os direitos fundamentais ficam emperrados em áreas consideradas marginalizadas. “São lugares onde o poder público não chega ou não quer chegar”, afirma. “Os moradores têm direito a habitação, serviços de saúde, educação, lazer, alimentação, empregos, cultura, mas esses direitos não são colocados em prática dentro das próprias comunidades. Estão fora delas”, completa.
Esse espaço que divide as áreas centrais e periféricas e a possibilidade de se chegar a serviços públicos mais efetivos, para Fernando, pode ser considerado como uma “zona fronteiriça”. “Fronteiras são espaços de trocas econômicas, culturais. É nas fronteiras que se compreende o outro sem sair do seu próprio espaço, atuando num lugar de coletividade, de novas identidades e lugares de mundo”, afirma. O pesquisador acredita que dentro das cidades essas fronteiras também existem, mas nem sempre são benéficas, e acabam impondo limites entre as partes que poderiam se tocar. “Quando se fala em morro e asfalto já se pensa no quanto a vida aqui e ali é diferente, no quanto a cidade não recebe bem quem vem do morro, e vice-versa. São pessoas da mesma localidade, com os mesmos direitos, se hostilizando como se vivessem em países politicamente opostos. Isso acontece porque realmente as políticas e as verdades são outras nesses locais. A culpa não é, necessariamente, das pessoas, mas do poder público que cria essa barreira”, enfatiza.
Uma alternativa à fronteira social
“Uma perspectiva diferente precisa ser mostrada aos adolescentes da favela. É papel do Estado criar políticas públicas ali dentro, que compreendam a favela nas suas multiplicidades, nos seus anseios, no seu direito ao espaço coletivo. Mostrar a eles que também podem ter acesso ao que é vivido fora dos morros. Não se trata de cuidar apenas da violência e do tráfico, como tenta fazer a polícia. Deve ser feita uma mudança na educação, formar pessoas dispostas a entender aquilo, aptas a promover mudanças”, afirma Stern. O pesquisador vê, dessa maneira, que o problema está nas bases da educação e em como os moradores da favela se enxergam distantes do Ensino Superior. Para eles, a necessidade de inserção no mercado de trabalho é maior do que a garantia de uma graduação. Isso porque muitos jovens da periferia não sabem o quanto o acesso a uma Universidade pode trazer benefícios no longo prazo. “Desconhecem isso porque não tiveram uma cultura na escola, de preparação para a faculdade”, completou Fernando. Muitos, ali, nem terminam o ensino fundamental. As opções são poucas. Eles começam a trabalhar cedo porque o dinheiro que os pais recebem é pouco para uma vida confortável. E a cada vez que esses jovens veem a possibilidade de ganhar um pouco mais, em uma circunstância imediata, o estudo passa a ser delegado para um segundo plano.
A internet, nesse sentido, pode atuar como parte da solução para essa realidade repleta de contrastes e fronteiras que separam. Renata, por exemplo, acredita que com os avanços das novas tecnologias de informação, os meios de produção se tornaram mais acessíveis na comunidade. Desde 2000, a jornalista trabalha no jornal O Cidadão, um projeto social também criado pelo CEASM, que tem como objetivo discutir e tratar com prioridade as questões sociais que envolvem a Maré, além de atuar no fortalecimento da identidade local. O Cidadão nasceu há 14 anos como um instrumento de comunicação comunitária para todas as favelas que formam o Conjunto. Por muito tempo, como conta Renata, a falta de recurso impediu que o jornal saísse em sua forma impressa, e foi através da internet que as pessoas continuaram tendo acesso ao conteúdo produzido para e pelos moradores do local.
“O jornal O Cidadão foi um verdadeiro laboratório na minha vida pessoal e profissional. Foi lá que comecei a acessar a própria Maré, desconhecida para mim enquanto uma moradora que não circulava pelos espaços”, afirmou ela. Foi através dele que Renata pôde notar as gradações de pobreza existentes dentro da própria favela. “Tem gente na Maré que nem existe para o Estado. Então, trabalhar no O Cidadão me fez entender muito sobre a necessidade urgente de políticas públicas para a Maré, em um primeiro momento, e para as outras favelas do Rio de Janeiro em geral”, completou.
Dentro de um cenário em que os meios de comunicação tradicionais estão descreditados, a mídia alternativa e comunitária ganha força. Há algum tempo essas iniciativas surgiam e desapareciam na mesma velocidade, muito devido à falta de recursos. Agora, com as redes, os meios de produção se tornaram mais acessíveis e abriu-se espaço para um veículo de informação sem censura.
“Eu acredito que a informação liberta.” Renata afirma que, ao acessar informações sobre seus direitos, as pessoas passam a ver sua realidade de maneira mais crítica, passam a desnaturalizar aquilo que viam como natural em sua rotina. Entender que a educação, e também o Ensino Superior, é um processo natural e que faz parte da formação de um profissional melhor qualificado é importante para tornar essa realidade mais próxima dos jovens da favela. E é isso que tentam fazer os pré-vestibulares comunitários. A própria Maré já tem projetos que oferecem até pós-graduação. A dificuldade está em perceber que, apesar de os acessos à educação de base serem diferenciados entre o centro e as áreas periféricas, o leque de possibilidades profissionais deve ser o mesmo. No entanto, essa realidade também é bastante contraditória: enquanto aqueles que cursam o Ensino Médio em escolas particulares completam o Ensino Superior em Universidades Públicas, os alunos de colégios públicos acabam optando por Faculdades particulares, por não acreditarem em sua capacidade.
Na tentativa de democratizar essas informações, esses veículos encontram uma grande dificuldade: o monopólio dos meios de comunicação. “Como diz Bourdieu, não existe opinião pública, existe opinião publicada e o que vemos nos meios de comunicação comercial não é a opinião dos mais pobres. Os pobres, pretos e favelados não participam da tal opinião pública”, afirma Renata. E isso, ainda segundo a jornalista, é muito danoso para a diversidade de pensamento, diversidade regional, diversidade sexual, diversidade religiosa, entre outras, a diversidade não faz parte das pautas midiáticas.
“Foi por esse motivo que entrei no Jornal O Cidadão, achava importante aquele tipo de intervenção do jornal, não só para os moradores da comunidade, mas para que as pessoas de fora soubessem o que acontece ali. Fui a primeira moradora da Maré a assinar o jornal O Cidadão como jornalista responsável. Foi uma felicidade imensa, e uma responsabilidade inigualável”, orgulha-se.
Hoje, Renata cursa o doutorado, e diz não ter vontade de sair da Maré. O fato de a jornalista ter estudado um pouco mais que os pais, irmãos e vizinhos, e de o Estado se fazer ineficaz em serviços básicos na favela, fez com que ela sentisse a necessidade de ficar na comunidade. Refletir sobre sua realidade vivendo-a cotidianamente pode fortalecer ainda mais o debate com aqueles que a cercam. “No final das contas, tenho certeza que na Maré está a minha história de militância. A Maré é o meu lugar”, finaliza.
*Confira a pesquisa “Violência e Desempenho Escolar: Evidências dos conflitos entre traficantes de drogas no RJ”, realizada pela Fundação Getúlio Vargas, em 2013
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