Palavras não-cruzadas: a realidade de mães que buscam vagas em creche para seus filhos e as possibilidades dinâmicas do ensino básico
Por Francielly Baliana
Uma mãe solteira como única provedora de uma família bem humilde de três: um neném recém-nascido, um jovenzinho de nove anos e ela, vigilante noturna, que tem que ceder aos abusos sexuais do patrão para permanecer no emprego, sempre por um fio pelas dificuldades de cuidado das crianças. O mais novo, distante da idade priorizada pelas creches locais, ficava com uma vizinha com quem a vigilante nutria uma relação incerta, munida algumas vezes por troca de favores, outras vezes por dinheiro. O mais velho, em férias, fica com a avó paterna, figura cogitada para criar o menino devido aos problemas financeiros e logísticos da matriarca.
A cena é do filme venezuelano “Pelo Malo”, da diretora Mariana Róndon, mas a verdade contida na ação transcende a tela e os limites regionais, estendendo-se por toda uma América Latina de origens e desigualdades bem semelhantes.
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No Brasil, no Rio de Janeiro, em Duque de Caxias, a diarista Jaciara Santana está na fila para matricular sua filha Michelly, de dois anos, em uma creche pública desde janeiro de 2013, e até agora não obteve sucesso. A alternativa para garantir os cuidados da pequena enquanto trabalha, tal qual no filme, foi inicialmente recorrer às trocas presentes na comunidade. “Coloquei o nome dela [Michelly] na fila para a creche mais perto da minha casa desde o ano passado, mas, o tempo foi passando e a vez dela não chegava. Aí, pagava R$ 30 por dia para uma senhora da igreja ficar com ela. Só que a senhora era muito idosa, dormia e não olhava ela direito”, explicou.
A solução encontrada pela diarista, ao fim, foi deixar a filha com a irmã, que morava em outro município, enquanto aguarda a convocação. “Só posso ver minha filha nos fins de semana, e às vezes nem dá. Fico com saudade, além do medo de ela não lembrar de mim”, relatou.
Casos como o de Jaciara preenchem o índice de 21 mil crianças que ficaram sem creche, só no Rio de Janeiro, em 2013, segundo apuração do programa "Bom Dia, Brasil". Isso acontece porque o número de vagas em creches públicas não corresponde à demanda, de acordo com a professora da Escola de Educação Infantil da UFRJ, Isabella Pereira Lopes. Para ela, não existem creches suficientes para o número de crianças que necessitam de um local para ficar, o que requer um investimento na construção de novas instituições.
Isabella ainda afirma que a busca pela inserção de crianças na educação básica tem relação com a presença da mulher no mercado de trabalho. “As creches surgiram numa tentativa de atender as demandas de mudanças econômicas, políticas e sociais. Uma dessas mudanças foi a incorporação de mão-de-obra feminina ao trabalho assalariado. Essa inserção proporcionou um novo papel atribuído à mulher e uma nova dinâmica na relação entre os sexos”, atesta.
O direito à creche faz parte da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), com a Lei nº 9.394, de 1996, que estabelece o atendimento às crianças de zero a seis anos como primeira etapa da Educação Básica. As primeiras unidades destinadas à Educação Infantil surgiram em universidades federais brasileiras. A pioneira neste sentido foi a Universidade Federal de São Paulo, em 1971, seguida da creche da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Estas creches consolidaram-se no contexto educacional, inspirando práticas para o surgimento de novas creches universitárias e para a educação brasileira.
No que diz respeito às creches universitárias, pode-se dizer que a década de 1980 representa um momento de expansão. Uma explicação para essa multiplicação de creches federais foi o Decreto nº 93.408, de 1986, que apresentava a creche no local de trabalho como um direito para servidores federais, homens e mulheres.
Essa associação entre as creches universitárias e sua utilização apenas por servidores soa como contraditória para a coordenadora geral da Creche da Universidade Federal Fluminense, Tania de Vasconcellos. Para ela, o direito a um recurso federal de ensino não deveria ser restringido a determinados grupos.
“As creches universitárias, assim como os hospitais e a própria universidade, são locais públicos e, portanto, destinadas ao público em geral, e não apenas aos funcionários. Essa limitação, que associa uma creche federal apenas ao público servidor, tem sido revista pelo MEC, por meio de ofício lançado esse ano, exigindo que as creches universitárias passem a atender crianças sem relação necessária com a universidade; ou que passem a ser regidas pelo município. A instituição tem as duas opções. Essa ação torna público o que sempre foi público”, reitera.
Se antes os atendidos eram crianças que faziam parte de um mínimo grupo beneficiário, daqui para frente, o que se pretende é que todas as famílias tenham oportunidade de pleitear acesso para seus filhos, neste espaço público e com investimento federal.
Não se trata apenas de “ter com quem deixar”
“O problema aqui não é com quem deixar a criança, mas a existência de um espaço adequado para a vivência dessa infância. O ensino básico é o primeiro degrau na vida educacional de uma pessoa. É preciso que as crianças passem por esse processo, tenham o contato com múltiplas linguagens e códigos de convivência e aprendizado”, afirma Isabella.
Ainda segundo a professora, uma educação básica que ocupe o tempo das crianças e dê tranquilidade para as mães que trabalham não é o principal objetivo desse projeto de ensino. Para ela, é preciso mais: promover uma educação inicial de qualidade desde o início da vida, que alcance crianças de todas as classes sociais.
O ensino, na prática, pode contribuir para novas perspectivas de vida. Incentivar uma criança a compreender as múltiplas realidades desde cedo e dar a ela oportunidades e identificação de talentos é primordial para uma educação de qualidade. Sobre essa questão, Tania afirma a importância da preparação de profissionais de Pedagogia, que possam exercer um olhar diferenciado para as diversas funções cognitivas dos alunos. “Alguns gostam muito de ouvir música, outros de filmes e desenhos. Tem criança que se distrai com lápis e papel, outras com brincadeiras e recreação, uns que sempre prestam bastante atenção nas histórias contadas e outros que adoram contar ou inventar suas próprias histórias”, diz.
Esse papel de identificação da criança em seus lugares de mundo pode ser essencial para a sua formação como pessoa. Crianças que frequentam creche, segundo Tania, aprendem a conviver com a diferença do outro mais cedo, a dividir, tomar contato, ter independência. “Aprendem logo a falar, ler, escrever. Ficam todas ali, se ajudando”, exemplifica.
A dinâmica de um aprendizado previsto não se vê quando a infância é passada na casa de um ou outro vizinho, de acordo com Isabella. Para ela, os laços comunitários são reforçados por essa troca de favores, no entanto, perde-se a possibilidade de formar um ser humano mais dinâmico e diferenciado quando não se insere a criança na educação básica. “É claro que os cuidados da mãe são sempre essenciais. Não apenas da mãe, mas do pai também, da família como um todo . É preciso que os meninos e meninas das gerações que se formam compreendam essa relação coletiva e social que é o mundo. Mas, com a necessidade de trabalhar, os pais perdem um pouco a noção dos caminhos trilhados por seus filhos. Daí a importância de uma educação de qualidade, não para substituir os pais, mas para contribuir para um crescimento intelectual e social desde a infância”, afirma.
O investimento nessas possibilidades da educação infantil pode ser a solução e o reenquadramento para muitas questões sociais. Não se trata, é claro, de limitar a problemática pela qual passa a formação do ser humano ao ensino básico. Segundo Tania, é preciso se espelhar em práticas que dão certo. A realidade das creches universitárias, onde se aplica a tríade Ensino, Pesquisa e Extensão, é apenas uma delas. “Nesses locais, onde a pesquisa e a formação de educadores é contínua, centenas de crianças têm a possibilidade de experimentar o melhor do ensino. Isso precisa ser expandido. Mais vagas, mais locais, mais pessoas. Deve-se notar a importância da educação básica e colocá-la em prática por meio de investimentos”, reitera.
Tornando acessível o que é lei, realidades como a de Jaciara e de outras milhares de mães poderão ser mudadas. E as creches não serão apenas um passatempo, mas, uma das muitas maneiras de se investir no que as crianças têm de mais especial: um olhar próprio sobre o mundo. Ainda no comecinho de suas existências.
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