Por Luana Marfim e Rebeca Letieri
Apesar da recente ascensão da internet, a TV ainda é a mídia preferida da população. É o que revela uma pesquisa feita pelo Ibope a pedido da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. O levantamento foi realizado entre os dias 12 de outubro e 6 de novembro do ano passado com 18.312 entrevistados maiores de 16 anos em 848 cidades nos 26 estados e no Distrito Federal. Ocupando o primeiro lugar na preferência nacional, a TV é a escolhida por 76,4% dos entrevistados e está presente em 97% dos lares brasileiros.
Agora imagine se existissem, na TV aberta, mais quatro emissoras não comerciais de televisão: uma para o poder público municipal, outra para o estadual e duas para a sociedade civil. O avanço democrático seria inegável. A população seria beneficiada com uma pluralidade de vozes, com a expressão da diversidade social, com a ampliação dos espaços de comunicação e de expressões artísticas que não estão diretamente vinculados aos interesses comerciais e existiriam mais fontes de informação, hoje tão restritas no país. Além disso, contribuiria para o fomento da produção audiovisual independente, de caráter local e regional e atuação na prestação de serviços de utilidade pública.
Esta é a proposta do Canal da Cidadania, definida pelo decreto que estabeleceu o sistema de TV digital, em 2006, a ser adotado pelo Brasil. Porém, não basta “reservar o espaço” para a sociedade civil. A discussão envolve também o caráter democrático e comunitário, expressando demandas sociais que não encontram espaço no sistema de comunicação brasileiro. A intenção é que o conteúdo seja totalmente não comercial, produzido e administrado por órgãos públicos e instituições sem-fins lucrativos locais. Para o jornalista Rafael Duarte, do Grupo de Trabalho do Canal da Cidadania da Fale-Rio (Frente Ampla pela Liberdade de Expressão do Rio de Janeiro), o Canal foi uma conquista frente a luta pela democratização da comunicação, através da luta pela TV digital no Brasil. “Não foi exatamente o modelo que a gente queria, mas ainda assim, uma conquista para garantir um espaço, ainda que pequeno, para a sociedade civil a partir da gestão comunitária”.
O sub-secretário de cultura do município fluminense Niterói, Cláudio Salles, mobilizado pela causa, falou sobre as mudanças e os novos desafios que o Canal vai trazer tanto à comunidade local, quanto à sustentabilidade das emissoras. “A partir de 2016 saem do ar os canais analógicos de televisão e entram os canais digitais. A experiência é nova. A TV digital é mais do que uma TV com qualidade, além da multiplicidade de canais, a televisão começa a ser, como a internet, interativa. Isso dá outra perspectiva ao futuro e a sustentabilidade desses canais”, afirmou.
Como vai funcionar?
Atualmente a TV aberta é analógica e funciona da seguinte forma: uma programação, um canal. Já a TV digital permitirá que uma mesma parte do espectro eletromagnético de TV (que entendemos como “canal”) veicule quatro programações diferentes simultaneamente, ou seja, a divisão de um canal em quatro. Isso foi denominado “multiprogramação”. O professor do departamento de Publicidade e Propaganda da Universidade Federal Fluminense (UFF), Adilson Cabral acrescentou: “o que é interessante, que nunca existiu antes na história do nosso país com relação a todas as experiências relacionadas ao audiovisual, é ter dois canais com programação diferenciada em TV aberta”.
Os pedidos de autorização para o funcionamento dos canais comunitários podem ser feitos formalmente pelos municípios até o dia 18 de junho deste ano, e mais um prazo de 18 meses, a partir da última data, por estados e fundações a eles vinculadas. Após a conclusão desses processos, a sociedade civil precisa aguardar pelos avisos de habilitação do Ministério das Comunicações. A partir daí, o Minicom irá selecionar as associações comunitárias que ficarão responsáveis pela programação em cada localidade.
A equipe do Canal Cidadania alerta, no entanto, que é necessário um processo avançado de organização e mobilização para ocupar esse espaço, imprimindo o caráter democrático e socialmente compromissado. Para isso, é preciso mobilizar uma série de atores que tenham condições de se articular para fazer funcionar as emissoras comunitárias e ocupar o Conselho Municipal de Comunicação. Discutir o modelo de Conselho e de associação que possam gerir democraticamente as emissoras de TV comunitárias torna-se urgente na conclusão desse processo.
Organizações e movimentos sociais do Rio de Janeiro que defendem a democratização da comunicação tem proposto que a implementação do Canal da Cidadania esteja vinculada ao funcionamento do Conselho. A norma prevê a formação de um órgão composto pelo poder público e pela sociedade civil, que possua algumas atribuições na administração do Canal. Em Niterói, por exemplo, para efeito da Conferência Nacional de Comunicação, ocorrida em 2009, foi realizada no mesmo ano, a Conferência de Comunicação que deliberou a criação do Conselho local. A Fale-Rio, que tem levantado a bandeira da importância de ocupar esse espaço, luta para que esse órgão seja mais amplo e discuta as políticas locais de comunicação de uma forma geral. “É importante mobilizar a população para ocupar esse espaço e pressionar os poderes públicos estadual e municipal para garantir a implementação e a autonomia do Canal Cidadania. Porém, mais do que dar voz às pessoas excluídas do oligopólio midiático, é importante fazer com que essas pessoas façam parte da gestão e do controle do Canal”, ressaltou Rafael.
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Uma alternativa à grande mídia
Dos anos 1990 pra cá, a mídia nacional tem se tornado cada vez mais concentrada, com uma grande redução no controle dos principais veículos de comunicação do país. Algo em torno de nove grupos familiares controlavam a grande mídia no decorrer da última década. Na indústria televisiva, três deles têm maior peso: a família Marinho (dona da Rede Globo), o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo (maior acionista da Rede Record) e Silvio Santos (dono do SBT).
Um importante estudo sobre os meios de comunicação no Brasil, feito em 2002 pelo Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom), intitulado “Os donos da Mídia”, mostra que a essas três redes nacionais, além de Record, Rede TV! e CNT, estão aglutinados 668 veículos em todo o país. São 309 canais de televisão, 308 canais de rádio e 50 jornais diários. Os chamados “donos da mídia” no Brasil, então, são as famílias que controlam as redes privadas nacionais de TV aberta e seus 138 grupos regionais afiliados, que são os principais grupos de mídia nacionais.
Somado isso, as iniciativas de TVs comunitárias foram suprimidas pelos interesses comerciais que pressionaram as tentativas de regulamentação desse segmento. Sem condições para financiamento, em um cenário em que a produção audiovisual independente sempre apresentou limitações, restritas às transmissões por meio de TV por assinatura, dificilmente essas TVs puderam exercer sua dimensão comunitária de fato. Adilson Cabral afirma que a existência do Canal não afeta o oligopólio midiático, mas incomoda como uma alternativa à comunicação dentro dos parâmetros atuais do país. “É uma possibilidade de incomodar com um conteúdo com uma cara mais social, com o desafio de experimentar o alternativo de qualidade”.
Rafael Duarte lembra que mesmo com o avanço da luta, os desafios apresentados para as TVs comunitárias no Brasil, pelo descumprimento da Lei Cabo (Lei nº 8.977/95), ourtogada em janeiro de 1995, que disponibiliza gratuitamente um canal comunitário pelas operadoras de TV a cabo no Brasil e a Lei da TV Paga (Lei nº 12.485/2011) de 2011, que regulamenta a comunicação audiovisual de acesso condicionado (mediante assinatura), ainda são uma realidade vigente. “Ainda hoje, três anos depois da lei implementada, a SKY, por exemplo, que funciona por via satélite, alega que não aderiu à transmissão das TVs comunitárias por problemas técnicos” acrescenta.
Agora, a entrada da TV digital abre espaço para que as emissoras comunitárias possam ser sintonizadas na TV aberta e para que sejam formados conselhos participativos que discutam o conteúdo e a gestão desses meios de comunicação. Junto disso, a produção audiovisual independente tem crescido no país e as novas tecnologias têm favorecido a ampliação do número de produtores. O professor da UFF acrescenta: “Para além de uma organização e um debate em torno disso, não é só de militância que a TV é construída, precisamos de outra articulação de produtores de audiovisual para fazer um produto diferenciado”.
Porém, como todo processo de criação midiática alternativa, o financiamento continua dificultando diversas ações. “Esse debate não interessa às grandes famílias de comunicação que querem manter o status quo”, completou Rafael. Alguns fundos públicos já prevêem recursos a serem aplicados no setor direta ou indiretamente (como a Condecine, por exemplo). O Canal seria a resposta, ao menos no plano teórico, que o governo federal daria para tornar a radiodifusão brasileira mais plural e democrática.
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O papel da sociedade civil
Apesar das possibilidades inscritas na implementação do Canal da Cidadania, duas questões precisam ser enfrentadas: a grande dependência da iniciativa do poder público e a necessidade de que a sociedade civil compreenda a importância do espaço e se mobiliza para ocupá-lo. O Ministério das Comunicações contabiliza pouco mais de 150 pedidos de outorga, de um total de 5.570 municípios brasileiros. O número baixo deve-se talvez por desconhecimento, ou descrença na proposta. O fato é que os movimentos sociais ainda não abraçaram a ideia do Canal e, com isso, pode-se perder a grande chance de ter um veículo de comunicação feito pelo povo e para o povo.
O desafio para a concretização dessas emissoras destinadas a sociedade ainda é muito grande. Montar uma emissora de televisão aberta e garantir sua gestão democrática é algo que pode ser considerado inédito no país, apesar dos esforços que já foram feitos nesse sentido. Rafael ressalta as barreiras encontradas para a implementação e a produção do Canal. Para ele, um dos primeiros obstáculos a serem enfrentados, diz respeito a necessidade de uma mobilização e de uma pressão popular frente às prefeituras e governos estaduais, para que estes façam dentro do prazo, uma solicitação formal pelo Canal Cidadania. No Rio, o prefeito Eduardo Paes já fez o pedido formal socilicitando a concessão do Canal, segundo Rafael, por pressão popular. “O desafio agora é viabilizar (técnica e estrutura) as emissoras”. Porém no município de Niterói, onde reside o jornalista, não existe uma sinalização do requerimento da prefeitura. “Para a maioria do poder público municipal e estadual, não interessa que a comunidade tenha sua voz amplificada. Só com pressão popular organizada e consciente conseguiremos garantir esse espaço”, completou.
No âmbito institucional, a parceria com a comunidade acadêmica torna-se fundamental na construção do Canal. O professor Adilson afirma que na acadêmia, a relação professor, estudante e funcionário potencializa o trabalho audiovisual, a partir de uma articulação com a comunidade do entorno para tratar de assuntos de interesse público. Porém, ressalta: “Nosso lugar institucional como programadores é na Educação”.
Outro grande desafio da mídia alternativa está no que diz respeito a qualidade técnica do produto, a fim de torná-lo atraente e com conteúdo. O subsecretário Salles comenta, ainda, sobre as dificuldades enfrentadas pela produção da programação do canal: “Produzir conteúdo para uma rádio é muito mais simples, já a televisão envolve muitas pessoas e muitos trabalhadores. A produção é muito mais sofisticada e complicada. Criar condições de sustentabilidade para uma equipe, pro canal, pra parte técnica e pra gestão desses canais comunitários é um desafio permanente”. Rafael completa: “Espaço tem, e muito. Garantir uma programação de qualidade técnica para disputar no mesmo nível com o oligopólio midiático, é outra barreira que precisa ser quebrada. Só assim construiremos um Canal de TV Alternativo de qualidade”.
Convocação para o Seminário do Canal Cidadania
http://www.youtube.com/watch?v=-KVtfpS6LTA
Vídeo: Wesley Prado
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