Por Gabriela Vasconcellos, Marcêla Macedo e Mariana Penna
Caminhava segura de si, alguns passos a minha frente. Poderia até passar por arrogante, mas quem a enxergasse a fundo conseguiria perceber que estava concentrada. Com medo de cair, talvez. E nem usava salto alto. Era provável que fosse para não reparar nos olhares.
Olhares assustados, curiosos, pessoas cochichando. Outros observavam, passavam, voltavam para ver novamente. Outros olhavam como olhavam para mim. E Bruna continuava andando. Volta e meia, desacelerava o passo para comentarmos alguma coisa. Mas não se prendia aos olhares, deixava que passassem. Deixava ir embora junto com os donos deles. E ela seguia.
Bruna Marx Benevides é transgênero, ou, como ela se identifica e apresenta, transexual. A complicação de nomes deve-se a uma questão simples em teoria: de acordo com a legislação vigente, só pode ser considerad@ transexual quem é operad@, ou está em vias de operar. O que não é o caso de Bruna. Bem resolvida com seu órgão sexual, mas não só com isso, ela conta que se identificou como menina a partir do que define como um processo de autoconhecimento, que nada mais é do que sua vida. “Meu lado feminino sempre foi muito forte, muito presente. Com cinco anos de idade eu já era discriminada, era excluída dos grupos, por apresentar comportamento diferente do esperado para um menino. Então eu digo que a Bruna sempre existiu, ela só não tinha esse nome.”
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Com uma infância difícil, no Ceará, foi expulsa de casa aos 15 anos, mas pôde contar com uma tia. “Minha mãe é fanática religiosa, então é impossível ela aceitar. Mas eu me pergunto por que é tão difícil respeitar. A minha família foi ignorante, no sentido de ignorar mesmo a situação. Eles me jogaram no mundo, me deixaram a esmo”. A relação com a mãe hoje é superficial. Se falam apenas pelo telefone, sobre os mais diversos assuntos, mas nunca aqueles que podem ser incômodos para os pais. Ela ainda não contou sobre a decisão de fazer sua transição.
Apesar de ter nítida experiência de vida, a contradição é que agora Bruna se prepara para entrar na puberdade. As principais mudanças que notou com o tratamento hormonal foram na pele, além da redistribuição da gordura para partes que são notoriamente femininas, como o quadril e seios. Isso no que toca os aspectos físicos. Nos emocionais, Bruna diz que seu endocrinologista brinca que em breve vai ter TPM. Ela conta que anda mais irritada, com um pouco mais de stress.
Hoje, ela tem o acompanhamento de um endocrinologista particular, mas começou como a maioria, sem acompanhamento especializado e pegando conselhos com amigas e fazendo o que chama de “coquetel maluco”. Ela diz que o que a desmotivou foi a exposição, além da grande dificuldade de se encontrar um endocrinologista que especializou-se no atendimento de transexuais. Ainda não existem, por exemplo, estudos concretos que definam como o estrogênio vai, ao longo da vida de uma pessoa, modificar o físico e o emocional.
A decisão final pela mudança é recente e segundo ela, costuma ser considerada tardia pela maioria das transexuais: há cerca de três meses, com 33 anos. “Pode parecer covarde, mas eu acho que fui muito sensata. Porque primeiro eu me estabilizei emocionalmente, financeiramente, e, a partir daí eu decidi que era isso que eu queria. Infelizmente, não é uma questão de ceder, mas de se inserir na sociedade. Você vai cavando seu espaço, e aí diz: ‘agora eu posso ser quem eu sou, posso decidir os rumos que vou tomar’. Por isso que eu decidi fazer a minha transição agora. Grande parte das pessoas trans quer fazer tudo muito cedo e, às vezes, até de forma inconsequente, talvez pela ansiedade: ‘eu quero peito, eu quero cabelo comprido’. Como se isso fosse determinante para a felicidade. Felicidade pra mim não é isso, é mais além”.
Infelizmente, não é uma questão de ceder, mas de se inserir na sociedade
Para conseguir estabilidade, leva uma ‘‘vida dupla’’: desde os 17 anos, trabalha “vestida de menino”, para se sustentar. Ela conta que viu pessoas ao seu lado fazerem a transição muito cedo, e foram fadadas a uma vida de prostituição. No Brasil, as transexuais enfrentam muitas dificuldades de inserção na sociedade e, consequentemente, no mercado de trabalho. Muitas vezes, a única opção que sobra é a prostituição. Outros fatores determinantes são a renda e o fato de se sentir acolhida, por ver outras pessoas na mesma condição.
Pode parecer assustadora a questão da vida dupla, mas é apenas mais uma das coisas que Bruna encara elativamente bem. Cheia de comparações, faz mais uma durante a conversa: “Você não vai trabalhar de decote e shortinho, vai? Então, se o meu trabalho exige que eu me apresente da forma como eu fui contratada, eu vou”.
Isso só se tornou um problema quando ela decidiu, de vez, fazer a transição. Pelo estatuto interno do órgão que trabalha, só podem trabalhar pessoas do sexo feminino e pessoas do sexo masculino. Por não se encaixar totalmente em nenhum dos dois, Bruna vai ser aposentada compulsoriamente – de forma obrigatória, quando completar sua transição. No entanto, faz questão de deixar claro que não vê como discriminação, mas uma consequência de não existir uma legislação específica que aborde o assunto, frisando a necessidade de que se analise caso a caso.
“No meu caso, não há o que fazer. Isso é uma ordem normal, hierárquica, que tem que ter em qualquer empresa. Vou tentar recorrer na Justiça para ter direito a uma aposentadoria integral. Porque eu não estou sendo aposentada por ser transexual, mas porque minha condição, no momento, é incompatível com o efetivo do órgão. Então minha luta não é para ser reintegrada. Como eu posso exigir que eles me mantenham no cargo, se eu vou sofrer bullying e discriminação por todos? Do momento que eu entrar no trabalho até a hora de sair, vou sofrer discriminação, olhares maldosos, assédio moral e sexual, talvez retaliações e inclusive ser preterida para cargos maiores, simplesmente por ser trans. Um simples almoço vai ser muito difícil, porque eu vou ser a única em um universo extremamente masculino, incluso de algumas mulheres com pensamentos sexistas e machistas”.
Bruna se refere justamente ao fato da dificuldade de pessoas trans se inserirem no mercado de trabalho. Mas não focou apenas na discriminação. Polêmica, afirma que “quem não é visto não é lembrado, e quem não é lembrado não existe”. Diz que, se quer provar para as pessoas que a situação que vive é normal, precisa acreditar e viver isso de forma natural. “Como vai haver demanda pras transexuais se elas não tão aí batendo na porta? A maioria está simplesmente se deixando levar por essa situação de exclusão. Talvez por ser mais cômodo. Porque não quer se indispor, não quer levar ‘um tapa’ na cara da sociedade”.
E completa dizendo que é fundamental que as pessoas trans parem de se esconder, até mesmo para acelerar o processo de garantia de direitos: “As leis, inevitavelmente, vão ser criadas, vistas, e pensadas de acordo com o momento que se está vivendo. As coisas vão mudando ao passo que as pessoas vão se abrindo ao entendimento. Então essa questão de lei está ai, é uma realidade. Agora eu acho que o que falta é as pessoas se permitirem. E saberem como vão administrar essas leis pras suas vidas”, diz.
A maioria está simplesmente se deixando levar por essa situação de exclusão. Talvez por ser mais cômodo
E como você faz pra ser tão segura, Bruna? Apesar de esperar uma fórmula mágica, ela logo revelou que não tem. “Eu fiz um caminho inverso. Ao longo da minha vida, eu me preparei para viver esse momento. Então, hoje me sinto mais segura pra enfrentar as mudanças de cabeça erguida”.
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Cabeça erguida e companheiro ao lado, segurando sua mão, atento a cada palavra que saía de sua boca. Volta e meia concordava com a cabeça, vez ou outra fazia piada, como quando Bruna falou em TPM. Gustavo Benevides, de 20 anos, é seu companheiro, com quem vive junto há dois anos. Com apenas três semanas de relacionamento, os pais de Gustavo descobriram que Bruna é trans e o expulsaram de casa. Com a mochila nas costas e três mudas de roupa, bateu na porta de Bruna. Quase um pedido de casamento. Este, de papel passado, deve sair logo depois da aposentadoria. Falando dos planos para o futuro, uma cena marcante: se olharam nos olhos, sorrindo e falaram quase em uníssono: “o lema da nossa casa é trabalhar, para ganhar, para gastar”.
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