Por Douglas Dayube, Francielly Baliana e João Pedro Soares
A memória é um espaço de construção constante. É a partir dela que a História encontra seu caminho. Nesse olhar para o passado, quando muitas verdades vêm à tona, é possível compreender as fronteiras que dão ao país um ou outro espaço para sua formação. Com o Brasil não foi diferente. Os sucessivos governos militares, entre 1964 e 1985, mostraram ao povo o que os livros do futuro deveriam contar: um período de grande repressão política e social, porém, com intensas lutas e movimentos de contestação. No entanto, não foi apenas a governança ditatorial de então que viu a capacidade das pessoas de ocupar as ruas. Em 2013, milhares deram novamente as caras. Editaram a história, como nos anos ditatoriais. São períodos que se tocam no eixo de cinco décadas. Uma mesma linguagem, a das ruas, a ser compreendida em diferentes terrenos. Essa é mais uma remissão. Mais uma memória à luz de uma construção que não para.
No período que precedeu o golpe militar de 1964, a sociedade brasileira estava mobilizada como nunca. No campo e nas cidades, camponeses e operários se organizavam para reivindicar mudanças nas estruturas sociais do país. Com João Goulart, um presidente articulado com as massas, tornavam-se reais as chances de reformas estruturais se concretizarem. Entretanto, a força dos movimentos populares não foi suficiente para impedir o golpe militar. Na madrugada do 1º de abril de 1964, o senador Moura de Andrade declarava vaga a Presidência da República.
Demian Melo, doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), explica a relação entre a repressão aos movimentos camponês e operário e a ascensão do movimento estudantil como protagonista das mobilizações sociais. “Como disse o Roberto Schwarz, crítico da literatura, o Brasil estava irreconhecivelmente inteligente nesse período antes de 64. Na virada dos anos 50 para 60, há uma ascensão dos movimentos sociais bastante significativa”.
O historiador lembra que, neste período, o movimento operário está rompendo as amarras do corporativismo sindical feita para evitar a luta de classes. Essas estruturas são incorporadas pela esquerda sindical da época, ligada ao Partido Comunista e também aos trabalhistas independentes e se tornam um esteio da luta de classes. Além disso, os trabalhadores rurais estavam muito mobilizados, tanto pela reforma agrária quanto pela sindicalização rural, que visava a levar a legislação trabalhista para o campo. “Essa luta colocava em xeque um padrão de aliança estabelecido pelas classes dominantes desde a Era Vargas, de não mexer na estrutura agrária do Brasil”, analisa.
Depois de 64, há uma mudança substancial da configuração do movimento social, uma vez que os mais significativos – o operário, dos trabalhadores rurais e mesmo o movimento dos subalternos das forças armadas – são estancados com o golpe. “A primeira onda de repressão atinge setores das forças armadas que apoiavam Jango e, depois, faz uma limpeza na estrutura sindical brasileira. Não é por acaso que os estudantes vão assumir uma posição importante”, explica Demian.
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E não era apenas no Brasil que as massas estavam convulsionadas. O jornalista e ex-militante do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8) Cid Benjamin, que hoje atua na Comissão Estadual da Verdade do Rio, destaca o contexto internacional como fator determinante para a eclosão dos movimentos sociais no país. “Nos Estados Unidos, houve grandes manifestações de massa contra a Guerra do Vietnã. A cada semana chegavam caixões e mais caixões cobertos com a bandeira americana, era um impacto muito grande. O México, logo abaixo, estava muito convulsionado em função das Olímpiadas de 68. As manifestações estudantis colocaram em risco a realização dos jogos, o exército reestabeleceu a ordem atirando com armas automáticas contra passeatas e matou centenas de pessoas. No resto do Continente Americano, o movimento estudantil também estava em alta”.
O continente europeu, berço das principais revoluções sociais dos séculos anteriores, também foi palco de fortes lutas populares. O exemplo mais emblemático é o de maio de 68 na França, que quase derrubou o governo autoritário do General de Gaulle. Cid Benjamin ainda destaca a Primavera de Praga e a Revolução Cultural em curso na China, episódio que classifica como controverso, apesar de ter “colocado o país de cabeça para baixo”.
O ex-militante, que participou do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, iniciou sua militância em meio a essa efervescência. De acordo com o jornalista, a repressão aos estudantes que iam às ruas era menor do que a exercida sobre outros setores que se levantavam contra o regime. No início da década de 60, a União Nacional dos Estudantes (UNE) já vinha ganhando força. Sua principal bandeira era a reforma universitária. Entre seus principais objetivos estava a promoção da conscientização popular através da cultura. Com o golpe, as pautas da UNE acabaram por se multiplicar. Mesmo com as crescentes reivindicações, o regime aprovou uma reforma universitária que caminhava no sentido contrário dos interesses estudantis, com reflexos nos dias de hoje. São exemplos o vestibular e a crescente participação privada no ensino. Além disso, foi instaurado o decreto-lei 477/69, o qual permitia a demissão de professores e a expulsão de alunos que realizassem atividades consideradas subversivas. Era uma motivação a mais para a ocupação das ruas.
A mobilização contra o governo, no contexto autoritário, levou a uma forte repressão por parte do Estado. Segundo Demian, a brutalidade foi determinante para a perda da base de apoio do regime, tendo em vista a configuração de classe dos estudantes, que levou ao seu posterior endurecimento. “Foi um golpe muito forte na classe média. Grande parte dela estava marchando, em 64, pelo fim do governo Jango, com medo do comunismo, porque iria acabar com a liberdade. Agora, eram seus filhos que estavam sendo atingidos. Em 68, quando Edson Luís foi assassinado, os estudantes entravam em teatros, interrompiam espetáculos e diziam ‘mataram um estudante, podia ser seu filho’. Uma parte das pessoas que estava ali apoiou o golpe. Talvez, sem dimensionar que aquilo era um golpe de Estado e iria instalar uma ditadura”.
Apesar de Demian rejeitar uma comparação entre a violência da polícia no período ditatorial e os dias de hoje, concorda que a repressão seja uma herança do regime. É o que detalha Luciana Lombardo, doutora em Antropologia Social pela UFRJ e professora de História da PUC-Rio. “A repressão é um traço de continuidade de um projeto de Estado horroroso. A polícia desse país é uma polícia de Estado, e o compromisso do Estado é eliminar as lutas sociais. Não é à toa que a Polícia Militar no Brasil nasce depois da Revolução Haitiana. Era tudo que eles não queriam: um governo de pretos, pobres, livres e republicanos. A questão é sempre classista, sempre racista. Desde o XIX até os dias de hoje”.
O movimento não parou por aí
Após a redemocratização, em 1985, o movimento estudantil perdeu parte do protagonismo das lutas sociais. Tanto pelo fortalecimento do sindicalismo no ABC paulista, que culminou na fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), como pelo surgimento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), em 1984, e sua consequente consolidação. No pré-64, o movimento estudantil vinha em um processo muito ligado à questão da reforma universitária. Nesse período, a UNE buscou uma aproximação com as lutas populares, tentando levar o debate dos movimentos sociais para dentro da universidade. Para Luciana, entretanto, a organização estudantil fez escolhas políticas equivocadas que fragilizaram sua capacidade reivindicativa.
A repressão é um traço de continuidade de um projeto horroroso. A polícia desse país é uma polícia de Estado, e o compromisso do Estado é eliminar as lutas sociais. Luciana Lombardo, antropóloga e historiadora
“A trajetória do movimento estudantil muda radicalmente após a abertura. Mais ainda depois do governo Lula. Antes, eles estavam querendo discutir as Ligas Camponesas, falar com o sindicato. Chegaram a propor que as faculdades de Direito dessem aula para sindicalistas, ou que as faculdades de Engenharia ensinassem aos mestres de obra. Acredito que teria sido uma iniciativa pioneira de acabar com a separação entre a universidade e o movimento social. A UNE desse período não tem nada a ver com o que ela vai virar no pós-ditadura. Acho que seu grande engano político vem depois dos anos 90, quando ela vai se destinar à tentativa de amortização do impacto do conflito, apoiando ações absurdas para as universidades públicas”.
Assim como a UNE, diversas outras organizações passam por uma crise de representatividade. Em junho de 2013, centenas de milhares de jovens foram às ruas para pedir mudanças. Desde o movimento que culminou no impeachment do presidente Fernando Collor, em 1992, não se via tamanha mobilização. A ebulição espontânea das massas e a enorme quantidade de reivindicações geraram incompreensão em historiadores, cientistas sociais e antropólogos.
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O fenômeno que mais gerou debates, sem dúvidas, foi a atuação dos Black Blocs. De vândalos a mártires, eram classificados das mais variadas formas. André Nicolau, jornalista que conheceu de perto a atuação desses grupos, destaca que todos em 2013 eram manifestantes e tinham algo a reivindicar, principalmente por sofrerem as mesmas injustiças diárias no transporte, que é apenas uma parte do caos cotidiano. Para André, a diferença reside na postura de ataque de alguns em face de repressão e violência policial. “Ao invés de simplesmente fugir ou ter medo, essas pessoas passaram a adotar a tática de enfrentamento e combate. E, justamente por haver conflito é que chamou a atenção da grande mídia – de forma negativa”.
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Apesar da conquista da democracia, a herança do autoritarismo ainda é visível. Em 2013, os estudantes voltaram a ser suas vítimas. Um dos marcos, nesse período de ida às ruas, foi o cerco ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (IFCS). No dia 20 de junho, universitários e professores que buscavam refúgio das bombas de gás lacrimogêneo atiradas pela Polícia Militar foram impedidos de sair do prédio. Embora as recentes mobilizações tenham trazido à tona uma crise das instituições representativas, a militância estudantil organizada ainda é forte. Organizações como a União da Juventude Socialista (UJS), ligada ao PCdoB; Kizomba, juventude do PT; e Insurgência, ligada ao Psol são alguns exemplos. O Levante Popular da Juventude é um desses grupos de causa nacional. O movimento se insere num projeto político que vê a necessidade de mobilização do povo brasileiro.
Ao invés de simplesmente fugir ou ter medo, essas pessoas passaram a adotar a tática de enfrentamento e combate. E, justamente por haver conflito é que chamou a atenção da grande mídia. André Nicolau, jornalista
Rafael Kritski é estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense e faz parte do Levante. “A gente se propõe a ser um movimento de massas, logo, tem muito trabalho a ser feito. Nossa linha política deve ter uma capacidade melhor de trabalhar com as contradições em que vive o jovem de hoje. Quando se fala em atingir as massas, é preciso lembrar que quem tá aí sofre, o dia inteiro, enxurradas de ideologias em sua cabeça. Nesse sentido, enxergamos que é preciso tocar onde o jovem é tocado, mostrar, por exemplo, que se a passagem aumentou é porque os financiadores de quem está no poder são os grandes empresários”. Contudo, essa atuação no cenário político não aconteceu apenas em junho de 2013. A organização existe desde 2006, e desde então vem realizando uma série de atividades e discussões que envolvem diversas pautas populares.
Militância independente, partidária; grupos de debate em universidades; movimentos sociais no campo e na esfera trabalhista; os ligados a mídias comunitárias, sindicatos. São inúmeras as organizações que resistiram à passagem do tempo e coexistem em prol de diferentes ideais. A complexidade da atuação do Estado, mesmo em pilares democráticos, ainda abre margens para questionamentos, pelo menos enquanto houver uma causa pela qual lutar. Num ano em que o golpe militar de 1964 faz 50 anos, a memória sobre quem resistiu a uma política de exceção, onde se censurava, torturava e exilava precisa vir à tona. Mostrar que o povo é capaz de ir às ruas quando está descontente é uma maneira de lembrar que nas mãos de todos se legitima o poder. Essa microfísica não linear pode ser vista no curso da História. É ela, ontem e hoje, que não deixa sair de cena a fragilidade de toda hegemonia quando vários, em uma luta de muitas classes, mexem em seus pilares.
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