Por André Heimlich, Patrick Rosa e Shimene Graça
Ouça a paixão do torcedor nordestino
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Há quem diga que Virgulino Ferreira da Silva jogou futebol quando era jovem na fazenda de seu pai. Na década de 1970, um pesquisador afirmou que Lampião teria construído um campo no terreno de uma empresa pesquisadora de petróleo em Paulo Afonso na Bahia e atuado como zagueiro no time da região. Se essas histórias são verdadeiras ou não, nunca saberemos, mas o que ninguém pode negar é a identificação que a figura do cangaceiro possui com o nordeste do Brasil. A ligação entre o futebol e o cangaço parece curta à primeira vista. Mas só à primeira vista. O “heroísmo” e a “bravura” de Lampião inspiraram e continuam a inspirar o esporte nesta região do país e a figura de Virgulino continua viva no imaginário futebolístico do nordeste. O cangaceiro virou mascote do Serra Talhada, clube de sua cidade natal, além de se multiplicar nas torcidas organizadas de equipes como o Sport Club do Recife que denomina os integrantes de “lampiões” em alusão ao rei do cangaço, e o Moto Club de São Luis do Maranhão.
Pode se dizer que o esporte é atualmente a maior expressão da cultura nordestina. Se no século XX o cangaço, na figura de Lampião, a literatura de Graciliano Ramos e o forró de Luiz Gonzaga e Dominguinhos voltaram as atenções do país para a região, desta vez é o futebol que coloca o nordeste novamente nos holofotes, com o público lotando os estádios e uma competição regional que se mostra maior a cada ano: a Copa do Nordeste, que não por acaso, é chamada de “Lampions League” (alusão à Champions League, maior competição de clubes do mundo).
O sucesso de uma competição
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Enquanto os campeonatos estaduais por todo o país observam o esvaziamento dos estádios e a diminuição do faturamento por parte dos clubes, o nordeste vive uma situação contrária. Em 2013, Pernambuco foi o estado brasileiro com maior média de público, com 8.481 torcedores por partida. A Bahia ficou com a sexta colocação do ranking, com média de 6.829 pessoas por jogo. Ceará, Paraíba, Maranhão, Rio Grande do Norte e Piauí também figuram nas 20 primeiras colocações da pesquisa realizada pela Pluri Consultoria esportiva.
O grande público se deve em grande parte à Copa do Nordeste, que reacendeu a rivalidade regional e mobilizou multidões para os estádios nos dois últimos anos. Em 2013, com 16 times, 62 partidas e quase 70 dias de competição, a Copa movimentou mais de R$ 23 milhões em patrocínios, direitos de transmissão e bilheteria. Um dos fatores que podem explicar a intensa participação do torcedor nordestino é o valor dos ingressos da região. Em Pernambuco, um bilhete custa em média R$ 14,32, enquanto que em Minas, segundo estado em média de público, a entrada chega aos R$ 50. Porém se os ingressos mais baratos ajudam a explicar o grande público no nordeste, ele não é o único fator, pois a região possui a menor renda per capita do país segundo o último censo do IBGE. Somado a isso, o fato de a região possuir poucos clubes na primeira divisão do campeonato Brasileiro torna surpreendente o grande público das competições.
Para o Jornalista Lucas Catrib, do canal Esporte Interativo Nordeste, o mais interessante é a paixão do torcedor da região, que, diferentemente do público do restante do país, apoia mais o seu time em momentos de dificuldade. Ele lembra a Campanha do Santa Cruz na Série D do campeonato nacional, que em muitas ocasiões lotou seu estádio com mais de 60 mil espectadores, além do Fortaleza, que disputando a terceira divisão conseguiu um público de 40 mil presentes na partida contra o Sampaio Corrêa do Maranhão, que também alcançou a mesma façanha atuando em casa na Série C. “O grande diferencial do torcedor nordestino é que ele costuma ir ao estádio quando a equipe está em baixa. Pode-se dizer mesmo que o torcedor do nordeste é o mais apaixonado do Brasil.”, afirma Catrib.
Lucas Catrib, jornalista cearense, fala do diferencial do torcedor nordestino
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Renascimento após dez anos
Realizada pela primeira vez em 1994, a Copa do Nordeste tem origens mais antigas, remetendo ao ano de 1976 com o Torneio José Américo de Almeida Filho, competição que reuniu os campeões e vices de seis estados da região. Porém, só ganharia o nome atual 18 anos depois. Entre 1997 e 2003 o torneio foi realizado de maneira intermitente, sofrendo uma alteração no formato em 2001. Após uma paralisação de dez anos, a competição retornou em 2013 em uma edição que foi sucesso de público e que teve o Campinense da Paraíba como campeão. Na edição desse ano, a final entre Sport e Ceará levou mais de 60 mil pessoas ao estádio. Com média de público de 5.333 por jogo, o torneio superou todos os campeonatos estaduais nesta temporada e chamou a atenção de todo o país.
André Dias, jogador do Santa Cruz, fala sobre a importância da Copa do Nordeste
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Paixão que move multidões
Entre os maiores médias de público da competição regional destacam-se os excelentes números alcançados por equipes de pouca expressão, como o Guarani de Sobral (CE) e o Botafogo (PB), que tiveram respectivamente médias de 4.002 e 6.684 presentes. A equipe paraibana desbancou times tradicionais do nordeste, como o Bahia, bicampeão brasileiro, e que teve média de 6.233 torcedores. Isso revela outro caráter da paixão do torcedor nordestino: a identificação entre o clube e a cidade. Embora a maioria da população torça para um time do sudeste, ou para times maiores, a paixão local fala mais alto. No Piauí, o clássico “Rivengo”, entre River e Flamengo, arrasta milhares de pessoas todos os anos, embora as duas equipes possuam uma estrutura semi-profissional e não disputem sequer a quarta divisão do campeonato brasileiro. Não é à toa que muitos duelos entre times da região são chamados de “Clássico das multidões”, como o confronto entre o CRB e o CSA em Alagoas.
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O veterano atacante do Santa Cruz André Dias diz que o torcedor nordestino é diferente de qualquer outro no país. André, que tem passagens por algumas das principais equipes do país, como Corinthians e Vasco, afirma que a paixão do torcedor da região é inigualável. “No Vasco foi onde eu percebi que a paixão mais se aproxima com a daqui do nordeste. Com essa explosão, essa energia, há muitas outras torcidas, como em São Paulo e Minas, mas nada que se compare com o nordeste.”, diz o atacante.
André Dias, jogador do Santa Cruz, compara a relação do torcedor nordestino com seu clube a de outras regiões do país
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Para Leandro Sena, técnico do Treze, a diferença está na forma de torcer. Ele lembra que os torcedores da região são muito mais participativos do que os do restante do país, marcando presença não só nos estádios, mas também no cotidiano do seu clube de coração. “A diferença realmente está aí. O torcedor nordestino é muito mais participativo. Ele acompanha os treinamentos e cria uma relação muito mais próxima do clube”, afirma o treinador.
O nordestino desconhece distâncias e mesmo que a sua equipe esteja mal ele apoia incondicionalmente. É o que comprova o amor de torcidas como a do Santa Cruz, por exemplo, que continuou a apoiar a equipe mesmo após inúmeras quedas seguidas no campeonato nacional.
Futebol e Cultura regional
O futebol se entrelaça na cultura nordestina de maneira que se torna impossível perceber o ponto de toque entre os dois. A bravura e o heroísmo tanto decantadas nos cordéis e na literatura regional, e que tiveram em Lampião um baluarte, sempre se fizeram presentes no esporte. A maioria das equipes da região possui como alcunha ou apelido um nome de super-herói ou algo que lembre a valentia. Como o Sport, que tem como mascote o leão, ou o Potiguar do Rio Grande do Norte, que é conhecido como “Time Macho”. A literatura de cordel também registra o futebol em comparação com o cangaço como nos versos de José Soares, em “Futebol no Inferno”, que retrata uma partida de futebol entre o Rei do Cangaço e Belzebu: “Lampião ganhou um turno Satanás outro também/ no Domingo que passou empataram em cem a cem/ agora melhor de três/ vai ser Domingo que vem".
A jornalista e torcedora do Bahia Clara Albuquerque acredita que o futebol do nordeste é sim um grande instrumento de identidade cultural da região e que o caráter “amador” do esporte local contribui muito para isso. “Essa identidade se verifica mesmo em termos do famoso ‘se macumba ganhasse jogo, o campeonato baiano terminava empatado’, que remete à um elemento cultural importante da Bahia que é o candomblé, unindo-o ao futebol.” afirma Clara.
Clara Albuquerque, jornalista e torcedora do Bahia, fala do futebol como expressão da cultura popular nordestina
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O humor e a criatividade no nordestino também têm no futebol uma poderosa fonte de expressão. As disputas regionais ganham cores típicas do nordeste, como os apelidos e alcunhas conferidos pelos torcedores aos times adversários. Entre os grandes clássicos, destacam-se o “Ba-vi”, confronto entre o Bahia e o Vitória, e o “Clássico dos clássicos”, duelo entre Sport e Náutico em Pernambuco. Porém, é em confrontos entre times de menor expressão que se encontram nomes mais criativos, como os clássicos maranhenses “Maremoto” - disputa entre o Maranhão Esporte Clube e o Moto Club, de São Luís, - ou o “Samará”, entre Sampaio Corrêa e Maranhão.
Se por um lado o paixão pelo futebol atrai multidões, de outro a violência impede que um público ainda maior frequente os estádios. O problema, que é grande em todo o país, é ainda maior no nordeste. A região registra o maior número de casos de assassinatos ligados ao futebol no Brasil e o Rio Grande do Norte lidera essa triste estatística. Em 2013, o estado registrou 27 mortes que tinham o futebol como pano de fundo, segundo dados dos órgãos de segurança locais. A maioria dos casos envolve confrontos entre torcidas organizadas da região, que algumas vezes se unem contra um “inimigo” comum. Há algum tempo, as torcidas organizadas do nordeste passaram a atuar em rede e misturar o futebol com outras “rixas”, como a rivalidade entre bairros. Por exemplo, a Império Vermelho do Potiguar é aliada do Garra Alvinegra do ABC, com isso, a Fúria Jovem do Baraúnas passou a ser parceira da Máfia Vermelha do América. Então, quando se trata de um jogo entre Baraúnas e América, a perspectiva é de uma partida tranquila. Já quando o confronto é entre Baraúnas e ABC, trata-se de um jogo tenso.
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Violência não afugenta torcedor
Um dos mais recentes episódios de violência nos estádios nordestinos foi a morte de um torcedor do Sport atingido por um vaso sanitário arremessado pela torcida do Santa Cruz, no jogo contra o Paraná Clube pela série B do Campeonato brasileiro. Porém é do futebol amador ou de várzea que vem o maior caso de bárbarie recente. No ano passado, uma partida em Pio XII, no Maranhão acabou com a morte de um jogador e o esquartejamento do juiz. A cabeça do árbitro ainda teria sido exposta numa estaca de madeira, lembrando o assassinato de Lampião e sua amada Maria Bonita.
A violência porém, não é suficiente para afastar totalmente a torcida dos estádios, como conta a torcedora do Vitória Júlia Belas. “Eu sempre fui pra estádio e sempre tive medo de violência, como a gente tem na cidade inteira. Aqui na Bahia a gente consegue encher estádio com ou sem esses problemas”, afirma a torcedora.
Mesmo com as adversidades o futebol nordestino segue mobilizando multidões e chamando a atenção do país. São torcedores que vencem problemas como a violência e as dificuldades financeiras de uma das regiões mais pobres do país para ver sua equipe atuar.
André Dias, jogador do Santa Cruz fala da paixão, da luta e da força da torcida nordestina
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Essa paixão do torcedor nordestino, que faz do futebol uma expressão do seu orgulho e da cultura regional, lembra o que o escritor Euclides da Cunha já trazia em sua obra “Os sertões”, ao se referir à resistência do povo de Canudos: “O sertanejo é, antes de tudo um forte”. Realidade que se aplica aos torcedores dessa região do Brasil. Pode se dizer que o torcedor nordestino é, antes de tudo, um forte.
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