Situação de rua e de anonimato compulsório. Relato das experiências de três estudantes de jornalismo após algumas horas passadas com desabrigados no projeto de caridade da igreja Lagoinha Niterói.
Por Felipe Gelani, Matheus Sousa e Natan Duarte
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Fonte: Guia de Niterói |
Noite chuvosa de quinta-feira, dia 21 de julho de 2016. Moradores de rua se reúnem em torno da igreja Lagoinha Niterói, em Icaraí, bairro nobre da cidade. Rostos marcados pela exaustão de mais um dia de caminhada. Panos velhos envolvendo casais, corpos aproximados para manter o calor. A porta gradeada da igreja, acima das escadas onde eles se agrupam, está trancada. Olhos desconfiados adquirem um ar jocoso quando nos aproximamos e demonstramos interesse. Coçam a barriga de um de nós. A recepção é acolhedora.
Eles aguardam a abertura das portas do templo - agora desativado para cerimônias - que oferece comida, banho, descanso e culto religioso durante as noites de inverno.
O dia 20 de junho foi a data escolhida para que um dos espaços da igreja, localizado na Rua Miguel de Frias, em Icaraí, fosse aberto especialmente para abrigar os moradores de rua, que vinham sofrendo pelas baixas temperaturas durantes as noites da cidade.
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Fonte: Google Maps |
A igreja abre as portas a partir das dez da noite para o povo da rua. Após a entrada, eles vão para o salão principal e ali são organizadas as necessidades que cada um precisa: banho, alimentação, primeiros socorros e vestuário. Pela manhã, é servido o café da manhã até às nove horas. Alguns vão embora, outros permanecem. Esses que ficam manifestaram o desejo de aprender a ler e a escrever. Além de oferecer o abrigo, a igreja se propôs a alfabetizá-los, regularizar a documentação deles e reintegrá-los à sociedade e ao mercado de trabalho.
A equipe de voluntários é formada por membros da própria igreja, que se revezam durante os três turnos. À tarde, começa a limpeza do local para que os moradores sejam recebidos à noite. As doações são feitas também pelos membros e por pessoas que se solidarizam com o projeto. Além das mensagens bíblicas em cartazes espalhados pelos corredores da igreja, um deles dizia “não é doação, é ação social”.
Diário de um encontro
Diário de um encontro
Somos em três e visitamos a igreja por três dias. Esse relato jornalístico resume o que vimos, o que ouvimos e o que sentimos ao acompanhar a noite de pessoas em situação de rua dentro de um ambiente receptivo. Esse relato é feito com pesar por não conter imagens. Imagens dos “garotos” do Carioca, como o coordenador do projeto se refere aos homens e mulheres em tal situação. Ele teme pela sobrevivência da iniciativa. “Entendo o intuito da matéria, de humanizá-los, mas preciso da autorização do pastor Felippe Valadão para que vocês possam filmar aqui”, diz ele. A preocupação se dá pela preservação da integridade física, moral e social de alguns que são atendidos, daí é melhor não filmar ninguém, de acordo com Carioca. A autorização não veio. E o que temos é texto.
Com os alertas de “só não pode filmar”, adentramos na nave da igreja, o espaço destinado aos desabrigados. A primeira coisa que notamos é o espaço dedicado aos colchões, travesseiros e roupas de cama. Mais além, bancos onde os fiéis participavam dos cultos estão empilhados, empoeirados pelo fato de a igreja estar fechada, ou molhados devido às goteiras no prédio. Poucos deles estão disponíveis para uso. Um mar de cadeiras inúteis. Nas paredes, placas com fotografias monocromáticas de cartões postais do mundo todo. Talvez representando as ambições dos antigos frequentadores da igreja? Talvez não.
O cachorro-quente é preparado para os desabrigados, que ainda esperam do lado de fora, na chuva. São quase dez da noite, o horário em que eles terão permissão para entrar. Enquanto isso, um casal se beija e se despede, ele vai passar a noite trabalhando, ela vai descansar. Quando as portas se abrem, eles entram. Recebem orientações e avisos. Eles respondem com “é claro”, “sim, senhor” e “pode deixar” e vão preenchendo a nave da igreja.
Dois dos mais jovens brincam de pião no chão de madeira. Dois sorrisos, nenhuma imagem. A câmera coça no bolso, enquanto uma certa insegurança bate. Como vamos nos aproximar? Como não ser indelicado? Eles já demonstraram que querem se expressar, como vamos filmar? Será que a autorização de filmagem ainda pode chegar? Insistimos no contato com o pastor Felippe. Nada. Auxiliamos na entrega da comida: um sopão com macarrão, farinha, carne e vegetais. Comemos juntos. Alguns comem três, quatro vezes. “Não comi ainda, pode trazer para mim?”, diz Maurício, que já tinha comido uma vez.
Todos satisfeitos com a sopa. Esta refeição era a única do dia para alguns ali. Uma voluntária da igreja começa a percorrer o espaço com uma prancheta na mão para anotar o nome de todos que ali estavam e organizar a fila para o banho. Mário, que anda com auxílio de uma muleta, era o terceiro a tomar banho. Enquanto aguarda a sua vez, ele se ajoelha e começa a orar. Minutos depois ele vem até nós e diz “Sabe o que me faz seguir andando, além da comida?” Logo em seguida ele mesmo responde: “A palavra de Deus”. Isto nos fez enxergar ao nosso redor naquele momento. Quase todos os desabrigados estavam com a bíblia na mão ou com ela ao lado. Uns até em posse de um rádio de pilha ouvindo alguma música gospel.
Percebendo isto, a mesma voluntária conectou seu celular na caixa de som da igreja e a playlist gospel tomou conta dos desabrigados. Enquanto uns cantavam alto, outros até dançavam. Baiano, assim chamado pelos outros, que antes brincava com o pião, agora se diverte com as músicas cantando junto. Sabia todas de cor. A expressão de felicidade em seu rosto contagia os outros, que começam a cantar também. Imagens que não se veem todos os dias. Pessoas que normalmente acabam sendo invisíveis nas ruas para a sociedade, que muitas vezes ignoramos quando nos pedem para dar um trocado ou pagar um lanche. Ou até que ficamos com medo de nos assaltar.
O ponteiro do relógio marca meia-noite. “Pode arrumar os colchões já?”, pergunta Geovane a um dos voluntários. Com a resposta positiva, ele é o primeiro a arrumar sua cama e deitar. Aos poucos, os outros também fazem o mesmo. Hora de descansar as pernas para o próximo dia.
Cada um deles possui histórias que nem sempre são aquelas que passam na cabeça da sociedade. Alguns estão ali apenas pata fugir de uma dura opressão familiar e um preconceito social que os atinge de tal forma, que a única saída é morar na rua.
É possível ver em seus rostos as marcas de uma vida que caminhou no calor e no frio por tantos lugares e não obteve ajuda necessária. É possível ver em seus os olhos os gestos ingratos que muitos por muito tempo receberam nas ruas. Apesar de tudo isso, é possível ver um sorriso ainda tímido nascendo e sentir que no coração de cada um, a chama da esperança continua acesa.
O que move cada um ali é a fé, independente da crença.
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