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Fake News e a Verdade Líquida

Por Diego Andrade de Abreu




Winston, protagonista do romance 1984, vive aprisionado sob um regime onde tudo é coletivo e todos são solitários. Seu trabalho é no Ministério da Verdade, órgão do Partido governante da Oceania, onde ele é responsável por reescrever os livros de história de acordo com as necessidades do Partido, mudando a percepção da população sobre os fatos em jogo no momento e fortalecendo e aprovando as ações governamentais. Muda-se o contexto, muda-se a história.

Muitos interpretam a trama como uma crítica aos governos nazifascistas europeus, outros, a governos comunistas como a extinta União soviética, mas as questões tratadas no livro extrapolam até mesmo visões ideológicas. O cerne do romance aponta para todo e qualquer regime que alcança um poder incontestado, capaz de rotular quem é aprovado e quem deve ser combatido, arbitrariamente. E esse poder é alcançado, na narrativa, através de dois fatores essenciais: a censura e a reescrita da história. E o que mais assusta é saber que o modelo demonstrado por George Orwell é perfeitamente possível - e muitas vezes já quase alcançado.

O entorno da recente campanha presidencial dos EUA trouxe à mesa um debate novo: a influência das notícias falsas no imaginário popular. Acusações de manipulação dos eleitores em prol da campanha pró-Trump através das chamadas fake news despertaram em todos os públicos a percepção de como boatos podem causar consequências sérias em determinados contextos – e nesse caso, assumirem efeitos para todo o mundo.

Diversos meios iniciaram uma movimentação intensa para criação de "mecanismos de verificação de veracidade", afim de sinalizar notícias e até mesmo quais páginas e veículos são "confiáveis". São os “verificadores de fatos”.

Os verificadores de fatos

Dentre os principais projeto na América Latina, estão:

Aos Fatos Lab

Endereço: aosfatos.org
Como descrito pelo próprio, o Aos Fatos Lab é o braço de consultoria e monitoramento em fact-checking voltado a empresas e organizações da sociedade civil sem vinculação político-partidária. Possui uma equipe multidisciplinar distribuída por Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, atuando separadamente da redação tradicional. O material de investigação produzido pode ser publicado ou veiculado apenas internamente, entre os clientes. Caso seja publicado, recebe o selo de investigado, ou “contratado”.

Um projeto interessante foi o “Cidade dos Sonhos”, que investigou as falas dos candidatos à prefeitura do Rio de Janeiro durante as onze semanas de campanha, verificando possíveis mudanças nas suas opiniões de acordo com as circunstâncias.

Agencia Lupa

Endereço: piaui.folha.uol.com.br/lupa
A Agência Lupa, da Revista Piauí, se diz a primeira a fazer checagem de conteúdo no Brasil. Possui um sistema bem didático, avaliando informações com um selo que pode variar entre diversas situações, como: “Verdadeiro”; “Verdadeiro, mas”; “Ainda é cedo pra dizer”; “Exagerado”; “Contraditório”; “Insustentável”; “Falso” e “De Olho”, sendo o último apenas um aviso de que o conteúdo está em monitoramento. As demais situações representam um resultado diferente da análise da Agência, o que facilita ao leitor a análise do tipo de informação com que está lidando, um sistema que se faz mais completo do que o booleano “Verdadeiro ou Falso”.

Truco

Endereço: apublica.org/truco
Truco é o projeto de checagem da Agência Pública. Integra o International Fact-Checking Network (IFCN), rede organizada pelo Instituto Poynter que reúne os principais sites de fact-checking do mundo. O roteiro de verificação é o seguinte:

1- Selecionam uma frase que possa ser verificada, que contenha um dado, referência a leis, permissões, proibições e outras situações.
2- Escolhem as informações de maior relevância dentre as opções.
3- As personalidades são submetidas às análises num rodízio, para que haja equilíbrio da cobertura.
4- Entram em contato com o autor da frase e pedem a fonte da informação, e procuram também outras fontes.
5- Comparam os dados fornecidos e classificam a afirmação.
6- Atribuem um selo ao resultado.
7- Entram novamente em contato com o autor para uma chance de explicação antes da conclusão da checagem.
O sistema utiliza também oito selos, como a Lupa, que são: “Verdadeiro”, “Sem contexto”, “Contraditório”, “Discutível”, “Exagerado”, “Distorcido”, “Impossível provar” e “Falso”.

Chequeado

Endereço: chequeado.com
Um projeto de fact checking na América Latina. O Argentino Chequeado também dispõe o selo International Fact-Checking Network (IFCN). Possui nove classificações para as notícias, que são: “Não Verificável”, “Verdadeiro”, Verdadeiro, mas...”, “Discutível”, “Apressado”, “Exagerado”, “Enganoso”, “Insustentável” e “Falso”.

O jornalismo parte da presunção de veracidade, baseando-se na confiança do espectador na premissa de que o jornal é confiável na transmissão das informações. O fact checking é, na teoria, inseparável da prática jornalística, mas num mundo onde as instituições possuem cada vez menos controle da produção de informações, confiar em tudo o que se apresenta como notícia é cada vez mais insustentável. E o número de falsas informações permeando os debates populares, para qualquer observador atento, é assustador. Sob esse ponto de vista, a ideia da existência de agências para institucionalizarem essa prática importante é inicialmente bem-vinda, mas carece de muitas reflexões, para que a prática não se torne uma armadilha informacional. A primeira das questões segue abaixo.

O que são fakenews?

Que tipos de notícias se enquadram no perfil de falsas? É necessário um texto deliberadamente ficcional ou simples omissões pontuais, edições indutivas e títulos mal construídos podem mudar o sentido de uma notícia?

As fakenews de títulos

As notícias falsas sempre existiram e surtiram seus efeitos. Boatos sempre tiveram força social e governos sempre usaram de narrativas para fortalecer opiniões. O que muda hoje é a dinâmica em que isso acontece. As redes sociais potencializam a dispersão de informações – falsas ou verdadeiras – tanto quanto os mecanismos de busca e o acesso à internet. Mas um fenômeno se destaca nos novos meios: a propagação de títulos.

O compartilhamento de notícias nunca foi tão fácil, e a dinâmica de redes sociais como o Facebook.com é tão fluída que notícias diversas são veiculadas apenas pelos seus títulos. Pense naquela notícia revoltante que você viu e, quando abriu para ler, era uma pegadinha?

O colunista Felipe Vilicic (Veja) fez um experimento sobre o assunto: criou uma notícia com o título “Estudo indica quebrasileiros leem cada vez menos. Será?” a fim de analisar as reações no Facebook. Logo no início do texto, ele explicava que se tratava de um teste. O resultado foi: dos 111 comentários no post (sem contar replies), apenas 7 eram de pessoas que conferiram a notícia, 8 deixavam em dúvida e outros 96 mostravam claramente que não haviam lido. 732 pessoas reagiram ao post, mas não era possível saber o resultado das reações. Já para os 191 que compartilharam, somente 5 haviam claramente lido. Houve, segundo o autor, comentários de 10mil toques explicando a notícia que nunca existiu. Ainda em suas palavras, “gastaram um bom tempo para opinar. Por outro lado, não gastaram o mesmo tempo lendo sobre aquilo que serviu de base para seu comentário”. Uma notícia que foi compartilhada apenas pelo seu título.

É nesse cenário que a máxima “É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade”, mote da Folha em 1987, mostra na prática seus efeitos.

Uma notícia surgiu recentemente sob o título “Grupo de oito pessoas mata travesti espancada e com 17 facadas” e ganhou vulto nas redes sociais, sob protestos a respeito da homofobia do ato. O subtítulo, no entanto, dizia que a motivação do crime era disputa por ponto de prostituição. O texto propriamente dito, ratifica o subtítulo e acrescenta o fato de que o crime foi cometido por outras travestis que concorriam pelo ponto. Nenhum dos itens foi mentiroso, mas a omissão de informações relevantes torna o título tendencioso para uma impressão falsa a respeito de uma questão importante para a sociedade de hoje.

A “leitura de manchetes” não afeta somente usuários incautos de redes sociais, ela atinge veículos respeitados de notícia no mundo todo. E isso leva à segunda questão: as fakenews são veiculadas somente por noticiários fantasmas?

Quem veicula fakenews

Um único perfil do Twitter.com, @solikearose, enviou mensagens para o provedor de televisão a cabo RCN, afirmando que “pornografia hardcore” estava sendo exibida na CNN em Boston em pleno dia de Ação de Graças, com a estrela pornô Riley Quinn, durante meia hora, no lugar do programa Anthony Bourdain: Parts Unknown.



Rapidamente, jornais como Independent, Mashable, The New York Post, The Daily Mail, Esquire, Variety e muitos outros replicavam a notícia. Um dos primeiros foi o Drudge Report, de Matt Drudge, famoso por descobrir o escândalo de Mônica Lewinski. No Brasil, não muito depois, foi a vez da Folha de São Paulo publicar a notícia, mesmo que os outros jornais já estivessem na corrida por apagar o que podiam ou editar seus títulos com uma interrogação no fim – parecido com o que Winston fazia, na ficção.

O site TheVerge publicou artigo sobre o boato que criou, comemorando, e na intenção de provar como as fakenews se espalham: sem fontes. Esse tipo de situação levanta um questionamento: quem realmente pratica o fact-cheking? E é aí onde a situação complica. Pessoas como os responsáveis pelo TheVerge e muitos outros defendem que é preciso censurar meios de comunicação com a flag “FakeNews”. Mas quais notícias seriam marcadas como falsas? Veículos como os citados acima seriam marcados pelo rótulo “fake” ou somente sites menores ou desconhecidos?
A situação vai muito mais longe do que um simples boato televisivo.

As primárias Clinton/Trump

No início das disputas presidenciais, os jornais americanos e de todo o mundo nem sequer cogitavam a possibilidade da vitória de Donald Trump.



Ao perceberem o progresso do candidato, em vez de noticiarem o fato, permaneceram na aposta pela presidência de Clinton e na publicação de editoriais contra Trump. No Brasil, os jornais seguiram o mesmo posicionamento.

O resultado: embora contra "todas as notícias, pesquisas e opiniões", o candidato republicano foi eleito. Após a contagem, os principais jornais noticiaram o fato como uma surpresa mágica, algo incrível e imprevisível. O editor do NYT, Arthur Sulzberger, chegou a publicar uma carta pedindo desculpa aos assinantes, onde levantou uma questão: "Depois de uma eleição tão errática e imprevisível, há questões inevitáveis: a pura inconformidade de Donald Trump nos levou e outros meios de comunicação a subestimar seu apoio entre os eleitores americanos?".

A declaração, principalmente vinda do editor de um jornal como o NYT, base usada por quase todos os jornais brasileiros como fonte de informação, é preocupante. Ele assume que a “inconformidade” dele e de seus pares e não os fatos em si influenciaram as informações transmitidas aos espectadores. A informação fora sobrepujada pela opinião?

Por outro lado, jornais pequenos alcançaram resultados positivos, como o nacional Senso Incomum, onde o colunista Filipe Martins não só previu o resultado da eleição estadunidense, como chegou a acertar 48 dos 50 estados, provando que os resultados não foram tão “mágicos” assim: basta pesquisar antes de opinar.

A discrepância entre as "notícias" e os resultados acabou por colocar a mídia em xeque, gerando uma forte percepção popular de incredibilidade dos veículos de comunicação.

As pesquisas eleitorais

Um dia antes do primeiro turno brasileiro, em 2014, o Datafolha divulgou uma pesquisa que apontava empate técnico entre o tucano Aécio Neves (26%) e Marina Silva (24%), com Dilma indo para o segundo turno com 44% dos votos válidos. No final da contagem, Aécio terminou com 7 pontos percentuais acima da pesquisa e 12 pontos a frente de Marina. Mas o que há de errado nessas pesquisas?

A grande questão das pesquisas eleitorais é que elas não apenas informam previsões, mas influenciam eleitores. O nome desse fenômeno é “bandwagon effect” e se trata de quando os eleitores votam em um candidato não por suas crenças ideológicas, mas por saber que ele é o preferido dos grupos majoritários. Esse molde de pensamento atinge principalmente eleitores sem viés ideológico, soltos no meio do debate, mas também outros, movidos por um sentimento de pertencimento, ou mesmo lógico, quando votam “contra o outro candidato”, tentando reforçar o concorrente mais próximo.

O jornalista Rodolfo Viana enumera a sequência de fatos:
1- O eleitor depende da mídia para escolher um candidato, pois em geral, não tem apego político.
2- A mídia cobre com mais afinco os candidatos que julga serem importantes, empregando maior esforço sobre eles e excluindo os demais.
3- Aproximando-se a eleição, esses nomes mais expostos aparecem com maior frequência nas pesquisas.
4- Graças ao “efeito de contágio”, os candidatos com mais pontos ganham cada vez mais adesão.
Esse efeito foi comprovado por Robert K. Goidel, da Universidade de Southern Louisiana, e Todd G. Shields, da Universidade de Kentucky, no artigo “The Vanishing Marginals, the Bandwagon and the Mass Media”.

Mas se esse efeito existe, então por que esse erro massivo das pesquisas eleitorais dos últimos anos? Trata-se exatamente do tema desse texto: a inveracidade.

A percepção da utilidade das pesquisas eleitorais acabou tornando-as instrumento de marketing político, pervertendo sua função real. Exemplos como o do Vox Populi – que errou todas as pesquisas e em prol dos mesmos candidatos – tornam-se cada vez mais comuns, vide as eleições americanas e a declaração de Arthur Sulzberger (NYT): eles não veiculavam pesquisas realistas, mas sim dados baseados em suas próprias intenções.

Essas pesquisas caíram no erro porque exacerbaram a prática, saturando o próprio efeito político que causariam. Outro fator que influencia nesse enfraquecimento é justamente a polarização política dos últimos anos, que resulta em muito mais pessoas próximas dos extremos e menos indecisos.
Essas perguntas ficam para o leitor: Houve apuração real de dados ou pelo menos um estudo sério? Se não, veicular informações assim não seriam prática de fakenews?

Quem vigia os vigilantes?

Após tantas elucubrações a respeito do tema (e que não foram suficientes para ao menos explaná-lo minimamente bem), precisamos pensar na complexidade que é filtrar tantos veículos em tantos meios e com tantas vertentes. É perceptível que há sim, muita gente mal-intencionada criando notícias falsas para mudar percepções e opiniões, e isso ocorre dos dois lados ideológicos (a exemplo, no caso Trump e Clinton), mas não só do lado de fora do quintal midiático.

O problema é muito mais sério e está muito enraizado na prática jornalística. Fakenews não é só russo criando notícia anti-Clinton nos swing states ou europeu e americano inventando golden shower de Trump com prostitutas russas, mas vai desde uma pesquisa eleitoral forçada no dia anterior à eleição, um título omissivo ou mesmo terminologicamente errôneo, ou um dono de site de notícias publicando gráficos que ligam toda uma vertente ideológica numa imensa conspiração ou até mesmo um comportamento midiático institucionalizado que privilegia opinião e ideologia antes da apuração factual objetiva.

As agências de verificação surgem como uma tentativa de amenizar esses efeitos – e novas práticas são realmente necessárias - mas oferecem um novo perigo: a possibilidade de censura e privilégios.
Por enquanto, o foco de suas ações é pontual, político, e visando personalidades, mas exemplos preocupantes já surgem no cenário mundial. O Facebook.com, que também está lançando suas “ferramentas de veracidade” para a rede, sofreu denúncias de seus próprios funcionários ao New York Times, reproduzidas também pela BBC. Segundo as denúncias, para entrar no mercado chinês, a empresa aceitou termos que propõem o desenvolvimento de ferramentas de censura real, até por localização. Notícias que foram de encontro com a política nacional serão combatidas.

No Brasil, por enquanto, oficialmente o trabalho será em conjunto com as próprias agências citadas acima (Aos Fatos, Truco e Lupa). Os usuários terão a opção de marcar uma notícia na rede social como falsa; essa notícia passará por uma triagem interna da rede, que verificará se a denúncia tem fundamento; após isso, sendo confirmada a suspeita, seguirá para uma das agências, que fará a verificação. Ainda assim, não será apagada, mas não poderá receber propaganda, promoções ou boosts.

Assim como o Facebook, as agências também são instituições com interesses, comandadas por pessoas com ideologias. Ao mesmo tempo que não podem dar conta de tudo o que se prolifera na internet, qualquer uma dessas instituições pode ser vítima de atentados de opinião e por tudo por água abaixo.

É necessário fazer algo. O fazer, porém, desprovido de devida reflexão e mecanismos autolimitantes, torna-se um problema por si só, e quando se trata de um fazer no tocante à avaliação do que é verdadeiro ou não, do que é aprovado ou não, qualquer deslize pode ultrapassar a linha tênue entre a busca pela verdade e a censura.

É necessário pensar o efeito de um selo "fake news" e sua proliferação. Numa época de redes sociais tomando espaço na divulgação de notícias e de um jornalismo cada vez mais opinativo, quem verifica precisa entender as nuances entre opiniões divergentes e falsas, para não corrermos o risco de uma lavagem ideológica nos meios, por mais tentador que isso possa parecer a alguns.

Segundo a filósofa alemã Hannah Arendt, a exacerbação das falsidades não significa que a mentira irá prevalecer, mas em vez disso, "vencerá o cinismo, que torna impossível a distinção do que é real e o que não é". A verdade se tornaria líquida. Por outro lado, o uso indiscriminado e mal-intencionado de um "selo de aprovação", se não for muito bem pensado e controlado, pode resultar no mesmo efeito, uma vez que remete a uma narrativa institucional, a qual Winston praticava e da qual tanto tentava fugir.

Assim como o melhor antivírus de um computador é o seu usuário, o melhor filtro de notícias é um leitor sem preguiça de se informar.

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