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Enegrecendo o cinema brasileiro

Jovens não se identificam com a falta de representatividade e projetos independentes surgem na contramão do discurso hegemônico 



Por Marry Lima Ferreira





A pesquisa “A cara do cinema nacional: perfil de gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos filmes brasileiros (2002-2012)”, divulgada em 2014 pelo GEMMA - Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), mostra que o Brasil das telas é um país predominantemente branco. Apesar de serem mais de metade da população (53,6%), os pretos e pardos representaram apenas 20% dos atores e atrizes que atuaram em papéis de destaque nos filmes brasileiros de maior bilheteria entre 2002 e 2012. Quando inserida na pesquisa a questão de gênero a representação é ainda mais distorcida, já que as negras apareceram em menos de dois a cada dez longas metragens e ocupam apenas 4,4% dos papéis no elenco principal de filmes nacionais. Nesse período, nenhum dos mais de 218 filmes nacionais de maior bilheteria teve uma mulher negra na direção ou como roteirista. O Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp), um dos mais renomados centros de estudos de ciência política na América Latina, foi o responsável pela pesquisa e comparou 939 atores, 412 roteiristas e 226 diretores de filmes, excluindo documentários e filmes infantis. 

Quem me representa?

Constantemente, personagens propagados pela telenovela e o cinema se transformam em referência para o espectador. Roupas, acessórios, expressões e comportamentos ultrapassam a tela e viralizam, inclusive, nas redes sociais.  Lucas Linhares, 19, estudante de Publicidade na Universidade Federal Fluminense, sempre foi um consumidor da TV e do cinema e nunca se viu representado. O jovem acredita que a principal colaboração dessas mídias para a construção de sua identidade seu deu através do apagamento e da construção de um modelo de personagem ideal que não correspondiam à sua realidade de jovem pobre e negro. “Por não ter nessas mídias um espaço onde as minhas realidades se encontravam, eu fui construindo toda uma identidade no consumo de realidades brancas”. Para o futuro publicitário, que passou por um longo processo de auto-aceitação, os profissionais de comunicação precisam romper com esse silenciamento e com os estereótipos, considerando que seu discurso possui uma força no local em que está inserido. “No caso da Publicidade, tem uma questão muito importante que é devolver simbolicamente um espaço de direito que foi tomado através das produções. É fundamental que, de outro lado, além de fiscalizar essas contrapartidas, as minorias étnicas se fortaleçam e trabalhem juntas reivindicando o próprio espaço para compartilhar histórias de afeto, de identidade, de união, de poder, de ancestralidade, de orgulho e de esperança. Só isso vai permitir que toda uma parcela da sociedade conheça histórias que nunca antes puderam ser assistidas, histórias roubadas e apagadas, histórias onde pela primeira vez elas se reconheçam”, afirma.

O Capítulo VI do Estatuto da Igualdade Racial, afirma em seu artigo 43 que a produção veiculada pelos órgãos de comunicação deve valorizar a herança cultural e a participação da população negra na história do país, mas não é o que acontece na prática. Todo esse processo de não-representação também influenciou a forma como Taynara Cabral, 20, via a si mesma como negra. A estudante de Comunicação Social da UFF já desejou e realizou algumas modificações em sua aparência para se assemelhar com as referências de estética perfeita e desejada divulgadas pela mídia. “A TV e o cinema, ainda como plataformas de entretenimento, me influenciaram diretamente em questões comportamentais. Os modelos pré definidos por esses meios, principalmente os mais hegemônicos, ainda que sutilmente, de certa forma moldaram minhas percepções a respeito do que eu deveria fazer e como deveria ser para estar inserida naquele padrão”.

Na contramão da hegemonia

 Difundir a necessidade de igualdade de raça e gênero é algo que precisa ser discutido amplamente e não podemos deixar de incluir a vital importância da mídia como formadora de opiniões e também meio de informação. Criada em 2016 pela cineasta Yasmin Thainá, 24, e como forma de romper a narrativa estereotipada sobre população negra, a AFROLIX é uma plataforma colaborativa que disponibiliza conteúdos audiovisuais online com, pelo menos, uma área de atuação técnica/artística assinada por uma pessoa negra. As opções de exibição no site trazem produções originais, filmes, documentários, curtas, cinema experimental, ficção científica, programas de TV, séries, clipes e vlogs – atuais e antigos. Apesar do nome, o site tem muitas diferenças em relação ao Netflix. A plataforma não cobra taxas de mensalidade para os usuários, é aberta e gratuita para todos e qualquer pessoa pode indicar conteúdos que gostaria de assistir. Além disso, a AFROFLIX não disponibiliza vídeos via streaming, mas reúne o conteúdo deixando a hospedagem com os produtores, redirecionando o acesso e gerando views para aos artistas e cineastas.

Na contramão das ideias propagadas pela mídia hegemônica, o  Fórum Itinerante do Cinema Negro (FICINE)​, atua como um espaço de formação e reflexão sobre a produção mundial de cinema, fotografia e audiovisual que tem os/as negros/as como realizadores/as e as culturas e as experiências negras como tema principal. Composto por historiadores, antropólogos e cineastas interessados na compreensão e debate fílmicos, o FICINE tem por objetivo construir uma rede internacional de discussões, projetos e trocas que tenham como ponto de partida e ênfase a reflexão sobre os Cinemas Negros na diáspora e no continente africano. Janaína Oliveira, pesquisadora, doutora em História pela PUC-Rio e professora desta disciplina no Instituto Federal do Rio de Janeiro – Campus São Gonçalo, coordena o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígena (NEABI) e é idealizadora e coordenadora do FICINE. Para ela, a ausência do negro no audiovisual brasileiro, assim como a imagem negativa que é construída ao redor dele, causa um impacto negativo no processo de afirmação identitária. “Esse discurso, que favorece a cultura branca hegemônica, não é um modo que favorece a identidade negra. Até muito recentemente, para a maior parte da população era ruim ser negro. Hoje, com as redes sociais e o novo acesso ao audiovisual, vemos gradualmente uma transformação. O processo ainda é longo e precisa-se não só descolonizar as telas, como o olhar”.

O estudante Lucas Linhares foi um dos que sentiu a influência das redes sociais no processo de valorização da sua identidade negra. “Foi sobretudo na Internet que toda aquele período de apagamento da minha identidade foi ganhando significado e eu fui me encontrando. Só depois disso é que eu fui tendo contato com uma ou outra entrevista em TV aberta com atores, ativistas e figuras públicas negras sobre esses assuntos que nos envolvem. O primeiro filme que assisti que retomou exatamente o processo de descoberta dessa minha identidade e que me fez sentir plenamente encontrado no cinema brasileiro foi o curta Pele Suja Minha Carne, , assim como Moonlight - mas ambos são do ano passado e independentes, entende? Essa outra fase é muito recente, algo posterior”, conta.

O fortalecimento de outras vozes

 Janaína Oliveira ressalta que o cinema independente é fundamental para se inserir nos espaços quebrando estereótipos e indo contra as representações hegemônicas da imagem. No entanto, a maior dificuldade dessas produções é o investimento para produção e distribuição, visto que a maior parte do cinema brasileiro é feito através de um número pequeno de editais. “Nós percebemos que nos últimos 14 anos houve uma transformação no acesso à universidade pública e isso contribui para a formação de jovens que assumem de algum modo a produção de curtas metragens no cinema negro. Os pontos de cultura e cursos livres fora dos grandes centros e da Zona Sul, também funcionam e se tornam lugares de oportunidades para pessoas sem condições financeiras para um acesso mais técnico”.

Contribuindo com o crescimento do cinema independente, a Nave do Conhecimento oferece diversos cursos, entre eles, cursos de capacitação de montagem, fotografia, direção e roteiro de cinema gratuitamente. O projeto, que é uma iniciativa da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro e está sob a administração da Secretaria Municipal de Desenvolvimento, Emprego e Inovação, visa a democratização do acesso à informação e ao conhecimento de novas formas de aprendizagem em ambientes colaborativos e criativos, promovendo a mediação da informação qualificada e o desenvolvimento de competências necessárias a todos na sociedade do terceiro milênio. Localizado em nove regiões das zonas Norte e Oeste do Rio de Janeiro, o conteúdo programático dos cursos, na atual gestão municipal, inclui atividades de formação que estimulem e promovam o empreendedorismo e a economia criativa.

O projeto de introdução ao cinema surgiu de um edital do Conselho Britânico para intercâmbio de experiências entre instituições do Brasil e do Reino Unido. Segundo Charles Siqueira, coordenador da Nave de Triagem, essa oportunidade foi percebida pelo Instituto Pólen e Creative Wick, que desenvolveram juntos com a Nave do Conhecimento um projeto que criasse oportunidades de trabalho e geração de renda para o desenvolvimento criativo de jovens de periferias do Rio, gerando impactos positivos na vida de cada um, nos coletivos de produção audiovisual que integram e, consequentemente, em suas regiões. As últimas três turmas abertas (150 vagas) receberam mais de 2088 inscrições de jovens de toda a cidade. Os cursos são voltados para pessoas com menores condições de acesso e renda, tendo a possibilidade de fornecer subsídios de passagens e alimentação aos alunos. Ao final do curso, ainda este ano, seis filmes, dos quinze realizados, serão selecionados para apresentação em Londres, onde irão representantes das produções. Todos os estudantes também podem retornar à Nave de Triagem para aproveitar os equipamentos em suas futuras produções, nos coletivos que integram e para consultar a rede de profissionais disponíveis. Para Charles Siqueira, “buscar essa variedade de contextos é o que possibilitará avanços políticos, garantindo a visibilidade e discussão de realidades”.

Na contramão da não-representação no discurso hegemônico, as produções independentes e os cursos livres abrem as portas do mercado audiovisual para jovens de todas as idades, classes e raças. Através destas ações é possível diversificar os discursos, dando voz e autonomia para que histórias sejam contadas e identificações sejam geradas.


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