Adoção das entrevistas de aferição da autodeclaração de cor/etnia pela UFF traz questionamentos
Por Lizandra Machado
As políticas de ações
afirmativas, popularmente chamadas de cotas, trouxeram a identidade racial para
o debate. Como se define quem é preto, pardo ou indígena? A Universidade
Federal Fluminense (UFF) é a primeira, entre as universidades públicas federais,
a adotar a “aferição da autodeclaração de cor/etnia” como parte do ingresso das
vagas destinadas a pretos, pardos ou indígenas no Sistema de Seleção Unificada
(Sisu).
As modalidades L2 (etnia,
instituição pública e renda) e L6 (etnia e instituição pública) representam 891
vagas, ou seja, 57,66% das cotas na UFF. Nas primeiras três chamadas, em
Niterói, 198 candidatos foram convocados para a entrevista de verificação de
cor/etnia e, desses, 113 candidatos foram considerados “não aptos”, ou seja,
57%. Ao todo, 77 recorreram da decisão e
37 tiveram o recurso deferido. Com isso, o número de barrados diminuiu para 76,
o que representa 10,88% dos 698 candidatos que realizaram a pré-matrícula.
Na sua quinta tentativa para
ingressar na UFF, todas elas pela modalidade L6, a estudante X foi aprovada no
curso de Serviço Social. No caso daqueles que concorrem às cotas para pretos,
pardos ou indígenas, como foi o caso da estudante X, é preciso preencher uma
autodeclaração de cor/etnia e anexar uma foto. É através da fotografia do
candidato que a comissão específica designada pela Pró-Reitoria de Graduação da
UFF (PROGRAD) define quem está apto para efetivar a matrícula e quem será
convocado para a entrevista.
“Fiquei com medo de não passar,
de eles olharem para mim e não me considerarem parda. Quando cheguei foi tudo
muito tranquilo, entreguei minha documentação pessoal para uma funcionária e
depois fui para outra mesa. Outra funcionária me atendeu e assinei um papel.
Ela observou minha foto e assinou um papel dizendo que estava aprovada. Uma
semana depois [dia 24 de março] saiu o resultado que tinha sido aprovada de
fato! Não aguentava mais esse negócio de correr o risco de ser eliminada”,
relata X.
X conta que no dia 7 de março,
data entrega dos documentos dos candidatos aprovados nas três primeiras
chamadas em Niterói, não foram dados muitos detalhes do processo.
No entanto, outros candidatos
tiveram que ser avaliados pela comissão de aferição. É o caso da estudante Y
que passou na chamada regular para Engenharia de Produção. Y não sabia das
entrevistas de aferição de cor/etnia e foi avisada por uma amiga que seu nome
constava na listagem de convocação, que saiu no dia 17 de março, quando ela já
tinha feito a inscrição em disciplinas.
“Fui assistir as aulas que
começaram no dia 20 para não me prejudicar caso eu passasse na entrevista. Mas
fiquei a semana toda muito nervosa em perder a vaga por causa disso. A
autodeclaração tem foto colorida e eles podem observar o fenótipo pela foto. Me
declarei parda e a foto era super nítida. Um ex-colega de escola se declarou
pardo também e teve a autodeclaração aceita e a cor de pele é bem mais clara
que a minha”, argumenta Y.
No dia da entrevista, Y descreve
que primeiro teve que responder três questões: por que se declarava negra, parda
ou indígena; se já tinha sofrido algum tipo de preconceito; e se tinha algo a
acrescentar. Em seguida, ela foi direcionada para uma sala em que estava a
comissão. “Acho que se é necessário essa entrevista. No entanto, ela deve ser
feita antes das aulas começarem. E, até mesmo na entrevista, eu não entendi
muito bem os critérios que eles utilizaram porque o questionário que eles dão é
só pra justificar porque estou me declarando parda”, questiona Y, que foi
considera apta sem precisar entrar com recurso.
Quem também teve que ser
entrevistado pela comissão de aferição é o estudante Z. Vindo da cidade de
Piracicaba, interior de São Paulo, Z foi aprovado no curso de Cinema pela ação
afirmativa L2. Ele conta que chegou na reitoria da UFF, onde foram realizadas
as entrevistas com a comissão, com tranquilidade por realmente acreditar ser
pardo.“Entrei numa sala com cinco pessoas me olhando, quatro delas eram
negras/pardas e uma era branca. Eles simplesmente me perguntaram ‘tem mais
alguma coisa a acrescentar além do que escreveu na folha [do questionário]?’.
Eu disse ‘não, tudo que eu queria dizer eu já escrevi’. Eles falaram ‘ok, pode
ir’. A ‘entrevista’ não durou nem 1 minuto”, explica.
No dia 24 de março, data em que
saiu o resultado da aferição das três primeiras chamadas da aferição dos cursos
de Niterói, Z abriu a lista e se surpreendeu com o fato de ter sido considerado
“não apto”, ou seja, não pardo ou preto, pelos avaliadores. “Eu sou do interior
de São Paulo, estava simplesmente a mais de 550 km de casa. Eu me vi sem
identidade, humilhado, sozinho e muito longe de casa pra poder simplesmente
sentir o calor e o aconchego da minha família e chorar”, revela Z.
No dia 27 de março, Z foi até a
reitoria da UFF. “Chegando lá, percebi que não estava sozinho e tinha diversas
pessoas pardas e negras na mesma situação. Foi ali, no meio de todo mundo na
mesma situação que eu, que comecei a retomar a minha identidade e pensar que
quem estava errado eram os ‘jurados’ daquela banca e não eu”, considera.
Voltando para a o lugar onde
então morava em Niterói, Z descobriu que foi aprovado na 4ª chamada na
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em São Carlos (SP). “No meu
recurso não constava foto nem nada. Eu apenas expliquei que sou pardo,
argumentei com dados do IBGE e disse que não concordava com o resultado de
maneira alguma, já que eu simplesmente SOU pardo e foi o que fiz”.
Apesar de ter desistido de
estudar na UFF, Z teve seu pedido foi deferido. “Eles não dão informação
nenhuma, só postaram o edital falando que poderíamos entrar com recurso sobre a
aferição quando todo mundo foi lá tirar satisfação. Eles dificultaram tudo da
melhor maneira que podiam”, critica Z.
Em nota publicada no dia 24 de
março de 2017, a PROGRAD divulgou que “Os procedimentos executados foram
aprovados pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão - CEPEx-UFF e atenderam
ao disposto em Editais, Comunicados Oficiais e documentos internos divulgados
na página do SiSU 2017-1 na UFF”.
O Coletivo de Estudantes Negrxs
da UFF (Cenuff) afirmou em uma publicação numa rede social no dia 26 de março
que a “medida é resultado da organização de estudantes e coletivos negros
universitários que, desde abril de 2016, estão denunciando as fraudes e
solicitando que a Universidade Federal Fluminense tomasse providências em
relação a isso”. O Coletivo ainda explica que este sistema é resultado de um
grupo de trabalho que contou com representação de estudantes, professores,
técnicos administrativos e da PROGRAD, que pensaram em mecanismos para trazer
mais segurança e impedisse fraudes nas autodeclarações de cor/etnia.
“As ações afirmativas em
universidades são conquistas sociais que precisam ser defendidas e aplicadas da
melhor forma possível para que alcancem seu objetivo: criar um ambiente
universitário mais diverso e possibilitar que grupos historicamente
marginalizados tenham acesso a seus direitos”, conclui a postagem.
Professora de Enfermagem na UFF e
criadora do Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra, Isabel Cruz, afirma
que a autodeclaração de raça/cor já faz parte do repertório de muitas ações e
programas sociais cotidianos e, enquanto técnica de coleta de dados para
pesquisa, tem sido exaustivamente testada.
“O problema não é a
autodeclaração em si. O problema é a reflexão que a pergunta suscita na pessoa
quando tem que se escolher entre pertencer aos grupos privilegiados (masculino,
branco, heterossexual, cristão, adulto, fisicamente capaz, etc) ou aos grupos
socialmente vulneráveis (feminino, não-branco, deficiente, não-cristão, etc)”,
analisa Isabel.
Segundo ela, quanto à
intencionalidade de fraude, é óbvio que surge à luz de uma ação afirmativa de
promoção de equidade entre grupos vulneráveis e grupos privilegiados. “Todavia,
se buscamos a construção de uma sociedade sem privilégios e pautada na democracia
representativa, não devemos usar do ‘privilégio do cargo’ para justificar uma
agenda que negue princípios e valores universais como a presunção de inocência,
a autodefinição e o direito ao documento público, entre outros. Neste sentido,
foi garantido ao(à) candidato(a) a apresentação de um documento público
(triangulação da autodeclaração) para desta forma ajudar no controle de um
eventual ‘viés racial’ por parte da banca de aferição”, explica a professora.
Questionada se o método de
aferição da autodeclaração da cor/etnia por meio de entrevistas realizadas por
uma comissão é válido, Isabel explica que cabe à universidade apresentar uma
resposta com base em evidência que identifique estratégia(s), complementar ou
suplementar à autodeclaração, para acesso por cotas étnico-raciais (ou no
futuro bem próximo, por gênero, por exemplo). “Não faltam pesquisadores(as) com
competência para tal. E já existem muitos(as) se dedicando a isto há tempos”,
explica.
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