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Artistas, Intelectuais e Clero com os Estudantes: 50 anos da Passeata dos Cem Mil


Por: Ricardo Faria

Em 26 de junho de 2018, completam-se 50 anos da histórica Passeata dos Cem Mil. Jovens do movimento estudantil -- na época, o principal opositor ao regime militar instaurado no país em março de 1964 --, intelectuais, operários, profissionais liberais, líderes religiosos e civis tomaram as principais vias do centro do Rio de Janeiro e caminharam durante três horas, gritando palavras de ordem e erguendo placas de protesto, sob a vigilância atenta de policiais e militares. Pelo menos desde 1967, os confrontos de estudantes com a polícia em várias capitais do Brasil eram recorrentes. O mote era a luta contra um projeto de reforma do ensino imposto pela ditadura, como relembra o professor de filosofia e ex-líder estudantil Antônio Serra.

“Eram os estudantes que estavam dando as cartas. De tal forma que os setores e partidos, tanto o Partido Comunista quanto outros partidos de esquerda, figuras políticas, parlamentares, todos tinham que, na verdade, se render a isso. Veja, no caso de um evento desse porte, o orador que todos aguardavam para ouvir era o Vladimir [Palmeira]”

Serra antecedeu Vladimir Palmeira na presidência do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (Caco) da Faculdade Nacional de Direito (FND), na Universidade do Brasil, atual UFRJ. Vladimir Palmeira assumiu a presidência do Caco em 1966, e em 1967 foi eleito presidente da União Metropolitana dos Estudantes (Ume) do Rio de Janeiro. Prosseguiu com a sua carreira política, participando da fundação do Partido dos Trabalhadores e tendo sido eleito deputado federal do Congresso Constituinte. Três meses antes da passeata, em 28 de março, enquanto estudantes protestavam contra o fechamento do restaurante "Calabouço", popular entre universitários de baixa renda, militares interromperam o ato com tiros. Uma das balas matou Edson Luís, estudante do ensino ginasial, que até 1971, correspondia aos quatro anos finais do atual ensino fundamental.

Se a tensão com os militares já era grande, a morte de Edson elevou a revolta para um novo patamar. O jornalista Zuenir Ventura, autor do livro “1968: o ano que não terminou”, relembra a comoção gerada pela morte e o cortejo fúnebre que se seguiu, com a presença de milhares de pessoas.

“Aquele enterro foi um começo de passeata, foi uma coisa impressionante, porque as pessoas foram chegando, o corpo dele foi velado na Câmara e dali saiu para o cemitério e as pessoas na janela, acendendo luz, vendo aquilo... e eu me lembro de uma palavra de ordem que realmente marcou muito que era assim ‘E se fosse um filho seu? E se fosse um filho seu?’

Antônio Serra também pressentiu a grande comoção:

 “Foi um garoto que estava no meio daquela coisa. Ginasiano. Não era nem universitário. E isso causou uma comoção tão gigantesca no Rio de Janeiro. Claro que houve uma certa apropriação política que aquele momento autorizava, digamos assim.” 

Nos dias seguintes, ocorreram demonstrações e marchas de protesto em várias capitais do país. Em Salvador, Belo Horizonte, Goiânia e Porto Alegre, estudantes e populares entraram em choque com as forças policiais. A UNE decretou greve geral dos estudantes. O governo enfrentava violentas críticas da imprensa pela repressão policial. Em julho, depois de superadas as divergências entre o governo federal, presidido pelo general Costa e Silva, e o governo da Guanabara, liderado por Francisco Negrão de Lima, as autoridades acabaram por permitir o agendamento de uma manifestação para o dia 26, uma quarta-feira. O bispo-auxiliar do Rio de Janeiro, dom José de Castro Pinto, além de outros religiosos, confirmaram a presença. A organização e o comando geral da marcha couberam à cúpula estudantil liderada por Vladimir Palmeira, com o apoio de outros intelectuais, religiosos, trabalhadores e mães de estudantes. Para Zuenir, a importância da passeata reside justamente na ampla mobilização popular.

 “Acho que foi um choque cultural forte, positivo, na opinião pública, mostrando que não era meia dúzia de gatos pingados que estavam conduzindo o movimento estudantil”

Apesar da forte mobilização, ou talvez por causa dela, a repressão da ditadura militar se intensificou. Em outubro, durante um congresso clandestino da UNE em Ibiúna (SP),  soldados da Força Pública e policiais do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), irromperam o sítio onde se realizava o evento e prenderam cerca de mil estudantes, entre eles os líderes estudantis José Dirceu e Vladimir Palmeira. Dois meses depois, em 13 de dezembro, o presidente Artur da Costa e Silva emitiu o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), o mais severo de todos os Atos Institucionais, que resultou na revogação de mandatos de parlamentares contrários aos militares, intervenções ordenadas pelo presidente nos municípios e estados e também na suspensão de quaisquer garantias constitucionais, o que institucionalizou a tortura. Era o início do período mais difícil da ditadura.

Para o estudante de jornalismo da Universidade Federal Fluminense, Samil Reales (23 anos), que apenas conheceu a manifestação pelos manuais de história e pela mídia, o que mais lhe marcou foi a presença de músicos consagrados, como Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso, Vinícius de Moraes, entre outros.

“Quando estudei esse tema nas aulas de história, as fotografias desses artistas presentes no ato foi o que mais me chamou a atenção. É difícil imaginar os músicos brasileiros de hoje tão atuantes e presentes no mesmo protesto, em prol de uma mesma causa.”

68 no mundo


Em vários países, uma nova geração se levantava contra o conservadorismo, com uma ampla lista de reivindicações políticas, econômicas e comportamentais. Foi o início de uma profunda revisão dos costumes e da sexualidade, cujo legado perdura até hoje. Para muitos estudiosos, o “Maio de 68” francês é reconhecido como uma grande onda de choque que se espalhou para outros países, como EUA, Alemanha, Tchecoslováquia, Iugoslávia e Polônia. Entre os círculos da intelectualidade de esquerda ao redor do mundo, estava na moda a obra “Eros e Civilização” de Herbert Marcuse, lançada em 1955, na qual se argumentava que o homem havia perdido a capacidade de gozo com os sentidos e precisava reencontrar o prazer nas coisas do mundo. Nesse mês, estudantes e operários tomaram as ruas para se manifestarem contra o presidente francês Charles de Gaulle e contra o conservadorismo da sociedade francesa.

Nos EUA, jovens se rebelaram contra a Guerra do Vietnã, pela ampliação dos direitos civis aos negros norte-americanos, e emergiu um dos mais influentes movimentos de contracultura: o movimento hippie. Florescia entre os jovens a teologia de inspiração budista do filósofo Alan Watts e a poesia beat de Allen Ginsberg. Surgia também uma nova droga sintética, o ácido lisérgico (LSD), que proporcionava experiências psicodélicas, e que inspirou influentes produções artísticas.

No Brasil, as ideias do maio francês eram influentes entre os estudantes engajados politicamente, que estudavam os intelectuais franceses. Porém, Vladimir, numa entrevista ao G1 em 2008 (aqui), negou que o movimento estudantil da época tenha sido influenciado pelo maio francês.

 “(...) tivemos muita influência dos Estados Unidos, porque lá havia a luta dos estudantes contra a guerra do Vietnã. No Brasil, já em 67 havia ligação grande dos estudantes com o movimento negro e o feminismo norte-americano. Havia também uma influência genérica da revolução cubana, na figura do Che Guevara.”. 

Também critica a associação direta que geralmente se estabelece entre o maio francês e o movimento estudantil brasileiro.

“Os caras veem 68 como clichê. 68 não foi apenas a Passeata dos Cem Mil, a luta contra a ditadura. Havia a luta estudantil pela melhoria da educação. Mas as pessoas se esquecem disso. Só ficaram os símbolos, que não traduzem a totalidade do que foi o movimento estudantil. Não tinha essa de amor livre e drogas. Só quando veio ao AI-5 (Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968, que deu ao regime poderes absolutos e levou ao fechamento do Congresso) é que um pessoal foi pro desbunde, drogas e rock n’ roll. Outros foram para a luta armada”.

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