Por Matheus Wesley
1968 costuma ser referido como o "ano que não terminou". Essa alcunha muito se dá por uma série de acontecimentos que marcaram a humanidade não só aquele ano como para todo o sempre. Em março, o estudante Edson Luís foi morto por policiais militares no Rio de Janeiro, em abril o pastor e líder dos direitos civis Martin Luther King foi assassinado nos Estados Unidos. Em maio, implodiu na França uma série de protestos organizados por estudantes da Universidade de Paris.
Os ares do planeta Terra estavam um tanto quanto conturbados e turbulentos, e se percebia entre a juventude a vontade irriquieta de burlar padrões, quebrar paradigmas e criar algo novo. Dessa vontade surgiu a Tropicália. Com a Tropicália, surgiram Os Mutantes. Com Os Mutantes, surgiu o seu álbum homônimo gravado em janeiro de 1968, mas só lançado em junho daquele inesquecível ano.
A banda, baseada em São Paulo, era formada pelos irmãos Arnaldo e Sérgio Baptista e por uma ainda desconhecida Rita Lee. Passou a conseguir certa relevância quando começou a ser atração fixa do programa da TV Record O Pequeno Mundo de Ronnie Von, mas após divergências artísticas acabaram por sair do programa. Essa saída fez com que se aproximassem de um outro ícone do que viria a ser o movimento tropicalista, o maestro Rogério Duprat. O maestro os apresentou a Gilberto Gil, para gravarem a música Domingo no Parque para a disputa do III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. A canção acabaria por conseguir a segunda colocação no festival, e deu mais visibilidade à banda paulista. Essa visibilidade fez com que Manoel Barenbein, produtor musical, os indicasse para assinar um contrato com a Polydor.
O álbum teve sua qualidade e experimentações reconhecidas pela crítica, nacional e internacional: a Rolling Stones Brasil o considerou o 9º entre os 100 maiores discos da música brasileira. A Mojo, revista americana especializada em música, o listou como o 14º disco mais experimental da história da música, à frente de discos famosos como o Sargent Peppers dos Beatles e The Pippers Gates of Down do Pink Floyd. Porém, isso não faz com que o álbum e a banda sejam devidamente reconhecidos pelo público, como aponta o ex-jornalista da Folha e dono do canal Alta Fidelidade, Luís Felipe Carneiro: "Tem seu reconhecimento, mas para um público muito específico. Em 2006, na época da volta deles (com Zélia Duncan nos vocais, no lugar de Rita Lee) fui em um show do grupo no Vivo Rio com 1/3 do público que a casa comporta. É subestimado, aliás como qualquer música de qualidade no Brasil", lamenta.
O disco possui a antropofagia característica de outros trabalhos do movimento tropicalista: influências de músicas estrangeiras (como os Beatles e o movimento psicodélico em voga na Europa à época) sendo "engolidas" e misturadas aos ritmos mais genuinamente brasileiros e "vomitando" algo novo. Essa atitude foi algo inovador para o rock brasileiro da época, visto que seus precursores no Brasil, os integrantes da chamada "Jovem Guarda", nas palavras de Luís Felipe "chupavam muito o que era feito lá fora". Além de quebrar quase que totalmente com o estilo predominante no Brasil à época: a Bossa Nova.
Nos anos 90, Os Mutantes tiveram um boom de reconhecimento, principalmente no exterior, depois que Kurt Cobain, vocalista do Nirvana, e Sean Lennon, filho de John Lennon, declararam sua admiração pela banda. Kurt chegou a escrever uma carta a Arnaldo Baptista e Sean fez alguns shows com o baixista da banda paulista. O filho de John Lennon chegou a até mesmo fazer a arte do disco Tecnicolor, gravado em 1970 mas só lançado em 2000. Esse reconhecimento tardio faz com que alguns fãs se questionem sobre o que seria da banda se tivesse sido formada na Inglaterra dos anos 60 em vez do Brasil? Apenas divagações, mas Carneiro considera: "Muita gente diz que seriam maiores que os Beatles, eu não acho, até porque eles se inspiraram nos Beatles. Mas seria uma banda muito grande. E seria lembrada da mesma maneira que é um Jefferson Airplane (banda americana de rock psicodélico)".
As músicas
Panis Et Circenses, a música que abre o disco, trata do estado de alienação que parte da sociedade brasileira vivia em relação aos fatos que ocorriam no Brasil e no mundo, dizendo "Mas as pessoas na sala de jantar, são ocupadas em nascer e morrer". A canção tem claras influências do rock inglês da época, usando efeitos de som e mudança brusca de tempo. A segunda canção do álbum é, talvez, o melhor exemplo da mistura entre estilos da banda: na música A Minha Menina, de letra de Jorge Ben escrita após pedido de Rita Lee, um ritmo levado ao samba é acompanhada de uma guitarra estranhamente distorcida. Os vocais alegres dão um tom descontraído à canção de amor.
Essa influência continua a ser percebida em O Relógio, música com efeitos sonoros de um - obviamente - relógio e feita em homenagem ao relógio de Rita Lee. A mistura entre os ritmos brasileiros e o rock inglês (apesar de, ironicamente, não ter em sua gravação os instrumentos típicos dos dois: a sanfona e a guitarra) presente em A Minha Menina, voltaria em Adeus Maria Fulô, originalmente escrita e gravada por Sivuca e Humberto Teixeira, em 1951. A canção, que é um baião, ganha uma pegada de rock com arranjos de música erudita feitos por Rogério Duprat.
Uma pegada mais pop é vista em Baby, uma balada escrita por Caetano Veloso sobre a vida do jovem nos anos 60. Senhor F é a música mais beatle do disco, sendo inclusive assumidamente uma forte influência de Being for the Benefit of Mr. Kite do aclamado álbum Sargent Peppers Lonely Heart Club Band da banda inglesa. Bat-macumba é uma música que mistura referências ao candomblé (como se percebe tanto no título como na batida da percussão) e a algo extremamente estrangeiro: o super-herói Batman. A letra, composta por Caetano e Gil, possui uma construção peculiar:
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba oh
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba
Bat Macumba ê ê, Bat Macum
Bat Macumba ê ê, Batman
Bat Macumba ê ê, Bat
Bat Macumba ê ê, Ba
Bat Macumba ê ê
Bat Macumba ê
Bat Macumba
Bat Macum
Batman
Bat
Ba
Bat
Bat Ma
Bat Macum
Bat Macumba
Bat Macumba ê
Bat Macumba ê ê
Bat Macumba ê ê, Ba
Bat Macumba ê ê, Bat
Bat Macumba ê ê, Batman
Bat Macumba ê ê, Bat Macum
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba oh
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá
Em Le Premier Bonheur du Jour, é uma canção composta pelos franceses Frank Gérald e Jean Renard, interpretada inteiramente em francês pelos Mutantes. O curioso é que, para fazer um efeito de som, se usou no estúdio uma bomba de inseticida em vez de um chimbau. O resultado foi uma pausa nas gravações pelo estúdio ter se impregnado de veneno. Trem Fantasma, composta em parceria com Caetano Veloso, é uma música recheada de efeitos sonoros e parece relatar um passeio no brinquedo de mesmo nome dos parques de diversões.
Tempo no Tempo é uma versão em português da música Once Was a Time I Thought da banda americana de rock psicodélico Mamas & The Papas. Ave Gengis Khan, com uma série de efeitos experimentais, é a canção que fecha um dos álbuns mais inovadores, experimentais e subestimados de nossa música.
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