por Suelen Fernandes
Consigo vê-los assim que eles chegam: aos grupos, em excursões escolares; em casal, tirando o dia para passear e curtir o diferente; ou até mesmo sozinhos, com semblantes reflexivos enquanto tomam o choque inicial ao nos conhecer.
Choque — acho que essa é a palavra que eu procuro. Os olhares dos visitantes seriam até engraçados de capturar, se eu pudesse tirar fotos. Mas eu não tenho braços (ainda que eu os tivesse em meu estado inicial), então só os observo passarem direto por mim e irem ao encontro de meus irmãos. Algumas pessoas até param e tentam analisá-los, mas nunca com sucesso. Afinal, o que seria uma análise de sucesso, se fomos criados para a subjetividade?
Também consigo ouvir o choque; às vezes é engraçado, às vezes é rude. Criancinhas com uniformes vermelhos gritavam ao nos ver de perto: “Uau, que arte bonita!”. Já seus pais, ao levá-los para conhecer meu próximo irmão, desdenhava: “Isso é arte?”
No andar de cima, onde filhos de outra criadora moravam, também dava pra ouvir o choque, ainda que eu não conseguir ver ou sentir. Contudo, eu sabia o que acontecia — olhares rápidos, frases debochadas, desdém —, pois eu mesma já fui vítima disso diversas vezes.
É sempre depois de sofrermos essas investidas que eu me lembro de minha mãe. A querida Sonia Gomes, que constantemente diz que “a vida renasce, sempre”. Nós não éramos vistos com apreço ou pouca importância por ela, muito pelo contrário. Ela nos transformava em algo novo, com pedaços especiais dela mesma. Em suas mãos, não éramos mais meros retalhos ou objetos sem uso, tralhas ou lixos; éramos refeitos, revestidos, avivados para trazer vida a quem nos observa.
Tenho certeza de que também foi assim com os que estavam no andar de cima, filhos de Mira Schendel. Seus filhos foram criados após sua vivência na própria guerra. Ela quis dar voz à quebra de padrões, externar sua intelectualidade através deles.
É dessa forma que sobrevivemos, atualmente no MAC Niterói. A cada dia de visitas, o mesmo questionamento permanece. Eu, Maria dos Anjos, filha de Sonia Gomes, sou arte?
Ali, eu sou sempre a primeira a ser vista, mas nunca a
primeira a ser apreciada.
Fomos acomodados nessa casa há algumas semanas, e estamos preparados para as visitas diárias desde bem cedo. Alguns de nós estão postos às paredes, outros estão guardados em cúpulas de vidro. Ou então pendurados ao teto, como eu. Os esperamos sempre com muita tensão: que reação causaremos hoje?
Fomos acomodados nessa casa há algumas semanas, e estamos preparados para as visitas diárias desde bem cedo. Alguns de nós estão postos às paredes, outros estão guardados em cúpulas de vidro. Ou então pendurados ao teto, como eu. Os esperamos sempre com muita tensão: que reação causaremos hoje?
Consigo vê-los assim que eles chegam: aos grupos, em excursões escolares; em casal, tirando o dia para passear e curtir o diferente; ou até mesmo sozinhos, com semblantes reflexivos enquanto tomam o choque inicial ao nos conhecer.
Choque — acho que essa é a palavra que eu procuro. Os olhares dos visitantes seriam até engraçados de capturar, se eu pudesse tirar fotos. Mas eu não tenho braços (ainda que eu os tivesse em meu estado inicial), então só os observo passarem direto por mim e irem ao encontro de meus irmãos. Algumas pessoas até param e tentam analisá-los, mas nunca com sucesso. Afinal, o que seria uma análise de sucesso, se fomos criados para a subjetividade?
Também consigo ouvir o choque; às vezes é engraçado, às vezes é rude. Criancinhas com uniformes vermelhos gritavam ao nos ver de perto: “Uau, que arte bonita!”. Já seus pais, ao levá-los para conhecer meu próximo irmão, desdenhava: “Isso é arte?”
Pude, também, sentir o choque: quando as professoras se
aproximavam de mim e, contra as regras de nossa atual casa, me tocavam, usando
de todos os sentidos para nos entender. E então, quando eu finalmente achava
que ali havia uma análise de sucesso, ela berrava para a colega mais próxima:
“Tira uma foto minha aqui!”. E então abriam seus sorrisos automáticos, e em
pouco tempo depois eu estaria no Facebook. Foi quase, chegou perto. Contudo,
fui frustrada novamente.
No andar de cima, onde filhos de outra criadora moravam, também dava pra ouvir o choque, ainda que eu não conseguir ver ou sentir. Contudo, eu sabia o que acontecia — olhares rápidos, frases debochadas, desdém —, pois eu mesma já fui vítima disso diversas vezes.
É sempre depois de sofrermos essas investidas que eu me lembro de minha mãe. A querida Sonia Gomes, que constantemente diz que “a vida renasce, sempre”. Nós não éramos vistos com apreço ou pouca importância por ela, muito pelo contrário. Ela nos transformava em algo novo, com pedaços especiais dela mesma. Em suas mãos, não éramos mais meros retalhos ou objetos sem uso, tralhas ou lixos; éramos refeitos, revestidos, avivados para trazer vida a quem nos observa.
Tenho certeza de que também foi assim com os que estavam no andar de cima, filhos de Mira Schendel. Seus filhos foram criados após sua vivência na própria guerra. Ela quis dar voz à quebra de padrões, externar sua intelectualidade através deles.
Todos nós fomos feitos de forma especial, com carinho,
história, paixão; fomos feitos para ajudá-los a se expressar, seja sua revolta,
seu amor, sua melancolia ou sua felicidade. E todos nós vamos parar nos mesmos
lugares: se não numa parede na casa de moradores ricos, nos museus ao redor de
nosso país de origem e no mundo. Não importa onde estivermos, continuamente
receberemos olhares diferenciados e, ao mesmo tempo, iguais: estranheza,
desdém, compreensão fingida, espanto, admiração. Todos eles se encaixam numa
mesma frase: “Isso é arte” — o ponto que se segue, contudo, muda: exclamação...
afirmação... pergunta.
É dessa forma que sobrevivemos, atualmente no MAC Niterói. A cada dia de visitas, o mesmo questionamento permanece. Eu, Maria dos Anjos, filha de Sonia Gomes, sou arte?
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