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Fazendo arte: moradores da Zona Oeste criam espaços para a cultura

Aulas de dança, ilustrações de mapas e eventos de música são algumas das iniciativas que desafiam as estatísticas e levam arte para as margens da cidade.


Por Mayra Castro


Apesar de ser a maior área populacional do Rio de Janeiro, a Zona Oeste possui os piores indicadores culturais da cidade. A situação fica ainda mais agravante se considerarmos os bairros mais periféricos, como Realengo, Bangu, Campo Grande e Santa Cruz. Embora esse cenário não seja estimulante, diversos artistas, coletivos e organizações seguem fomentando projetos culturais e permitindo que a população possa produzir arte longe dos grandes centros.

Foto: Instituto Rio

Mapas e desigualdades socioespaciais


De acordo com o Instituto Rio, a Zona Oeste é a região de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município. Com 41,36% do total de habitantes da cidade, é um espaço definido por intensas desigualdades sociais. Esse panorama se reflete na cena cultural, caracterizada pela escassez de museus, bibliotecas, centros culturais e teatros.


Foi esse cenário que estimulou Lucas Simpli a produzir o Dossiê da Zona Oeste: Cartografias das margens (2020), coleção de artes que expõem o contraste entre as diferentes áreas do Rio de Janeiro. O professor de artes visuais nasceu na Gávea, bairro da Zona Sul que possui o maior IDH da cidade e se deparou com uma realidade contrastante quando se mudou para o bairro de Campo Grande. “É gritante a diferença, é como se fosse outro país ou duas cidades completamente diferentes. A Gávea é um lugar que tem diversos teatros, cinemas, galerias de arte, praças públicas, planetário, universidade… A desigualdade é um abismo se comparar com qualquer lugar da Zona Oeste”, ele observa.


Procurando sempre levar assuntos diferentes em suas aulas, Lucas começou a pesquisar sobre as Vanguardas Russas do começo do século XX, movimentos que pensavam em uma arte voltada à revolução social e ao povo. “Então ele [o Dossiê] surgiu nesse contexto, fazendo referência tanto à relação pedagógica da arte soviética quanto a um grupo de artistas ativistas chamado Guerrilla Girls, que faz cartazes com estatísticas pensando a relação entre feminismo e a arte. Juntei um pouquinho dos dois pra criar esses mapas pras redes sociais”, explica o professor.


Imagens: Instagram/ @lucas.simpli


O conjunto de mapas procura, a partir da arte, demonstrar as desigualdades sócio-espaciais presentes no Rio de Janeiro. Neles são expostas estatísticas sobre aparelhos culturais, IDH, empregos formais, livrarias, transportes públicos, colégios e universidades federais, coronavírus, dentre outras. As artes foram pensadas para viralizar na internet e estão disponíveis no perfil de Lucas no Instagram.


“A arte é um direito humano e isso envolve políticas públicas de acesso. Assim como as pessoas precisam ter acesso à alimentação, precisam ter acesso à arte, que alimenta a alma”, diz o professor, após trazer discussões sobre as diferenças entre os cinemas nas zonas da cidade. Ele também trabalha no Instituto Casa, a partir da Missão Arte Educação, que realiza projetos artísticos, sustentáveis e alternativos na Favela do Aço, em Santa Cruz.


Artistas em construção


Não é à toa que as desigualdades representadas nos mapas de Lucas são as mesmas vivenciadas pelos jovens artistas Christian Kairós e Ana Beatriz. Ambos concordam que há pouco investimento para a arte e cultura nos espaços em que moram dentro da Zona Oeste e que as oportunidades nesse ramo estão concentradas no centro da cidade.


Christian Kairós é cantor de rock e soul, morador da Estrada da Posse, divisa entre os bairros de Campo Grande e Santíssimo. De acordo com ele, uma de suas dificuldades é o acesso a aparelhos culturais. “Sendo um artista que mora nessa área, eu acredito que tenho mais dificuldades do que as pessoas que moram no centro e na zona sul para conseguir apoio e acesso a essas instituições. No sentido de investimento financeiro, de fazer e participar de eventos, de receber patrocínios, e também no sentido de ter uma formação artística, fazer algum tipo de curso ou palestra de forma gratuita”, enumera.


Ele também acrescenta que geralmente as instituições culturais que funcionam de forma excelente na região estão atreladas a bairros onde há maior poder aquisitivo. “Um exemplo disso é a Fundação Cidade das Artes, um aparelho cultural e público dentro da Zona Oeste, que funciona muito bem em muitos sentidos. Mas talvez não seja tão acessível para pessoas de áreas periféricas, por estar situado na Barra da Tijuca. Ele vem de uma realidade muito diferente da minha, de santíssimo e Campo Grande”, explica.


A partir de uma insatisfação com a falta de relevância dada à produção cultural na Zona Oeste, Christian sentiu necessidade de criar uma equipe colaborativa para produzir um festival. Assim surgiu o Coletivo Oeste. O cantor explica a proposta do evento:

“O objetivo é quebrar essas barreiras e mudar o cenário. Colocar em evidência todos os produtos que a gente tem nesse território tão variado e diverso, e dar mais visibilidade e voz para as iniciativas que acontecem aqui”.


O Coletivo produziu, em 2019, o festival Oeste-se, a partir de uma ocupação realizada no Museu da República, na Zona Sul do Rio. A ideia era trazer um olhar de fora para as produções de sua comunidade. O músico conta que os próximos eventos serão realizados na Zona Oeste e fala sobre o podcast Novo Oeste e a página Zona Oeste Nova Geração, que vêm sendo produzidos pelo coletivo. São trabalhos colaborativos e voluntários, com poucos investimentos financeiros, mas de grande importância, pois refletem as vivências e desafios de ser morador dessas áreas mais periféricas.


Foto: Instagram/ @coletivooeste


Tanto Christian quanto Ana Beatriz, dançarina do coletivo RUA e da companhia Criar e Recriar, afirmam que é muito difícil ter retorno financeiro. Enquanto o primeiro decidiu trabalhar em um emprego formal, além da área da música - para conseguir se sustentar enquanto constrói seu trabalho artístico -, Ana está cursando dança na UFRJ. 


“Tudo é muito longe de Campo Grande e quando você é preta, pobre, favelada e mulher é mais difícil ainda”, conta a dançarina. Moradora de Santa Margarida, sub-bairro localizado entre Cosmos e Campo Grande, ela observa que muitas crianças, jovens e adultos encontram apoio e acolhimento em espaços culturais e que estes deveriam receber mais investimento e valorização.


“O coletivo RUA, do qual eu faço parte atualmente, junto com o Rua Company e o Criar e Recriar - que é uma companhia de dança com foco nas mulheres das danças urbanas - me ensinou muito a ter disciplina e estudo. E não digo nem só em relação à dança, mas na vida. A minha insegurança, auto-estima e etc... Hoje eu sei que a minha arte ajuda outras pessoas, assim como me ajudou a me posicionar mais nas minhas escolhas. Só gratidão”, diz Ana.


Desafiando as estatísticas


Douglas Arêas, conhecido como DG, é dançarino, produtor cultural e diretor do coletivo RUA, do qual participa Ana Beatriz e vários outros jovens de Santa Margarida. Ao fazer pesquisa recente sobre aparelhos públicos culturais na prefeitura, ele percebeu como é desigual a distribuição desses equipamentos. Porém, apesar do cenário não ser favorável, ele vê a cena da produção cultural na Zona Oeste com otimismo.


“O processo de desvalorização da cultura e seus benefícios foi um grande projeto político. E para entender melhor essa questão, é necessário olhar para o passado e enxergar qual era o verdadeiro objetivo desses governos para a Zona Oeste. Aqui se concentra grande parte da população do Rio de Janeiro, mão-de-obra que desenvolve suas atividades em outros bairros. Logo, é um espaço que apenas serve para repousar os trabalhadores. Mas isso vem mudando em nosso bairro, graças aos artistas e produtores que desenvolvem seus trabalhos de forma consciente e consistente, acreditando que, mesmo que demore, os resultados vão chegar”, explica o dançarino.


DG relata que o Coletivo RUA nasce de suas vivências na Cia JP MOVE, que conta com um projeto social e funciona nas áreas de Realengo, Bangu, Batan e Padre Miguel. Percebendo a necessidade de criar algo parecido em sua comunidade, Douglas começou a estruturar seu próprio projeto. Ao longo de quase oito anos, o RUA já produziu eventos, festivais internos e aulas de dança para a região, além de ter inspirado vários jovens a seguir carreira na dança.


Foto: Instagram/ @r.u.a


“Me sinto muito orgulhoso ao olhar para trás e observar uma caminhada de oito anos dedicados à cultura da minha comunidade. Hoje, observar jovens que estão nas faculdades, que entenderam a importância da cultura, que tiveram contato com os processos de construção de indivíduos pensantes, é algo incrível”, diz ele, e acrescenta: “Acredito que os projetos têm os seus papéis dentro desses espaços, porém, não podemos terceirizar as responsabilidades dos governos. Longe de mim querer romantizar. Nossa história, mesmo sendo linda, é baseada em muita luta, suor e renúncia”. 


Juventude na cultura, arte e política


Também é na base de muita luta que vive a organização Cultura Zona Oeste. Foi em 2018 que Kawan Lopes se organizou com alguns amigos, no quintal de sua casa, para formar rodas de conversa sobre questões políticas. O jovem negro, que hoje é universitário e ativista, conheceu Marielle Franco durante o movimento de ocupação de seu colégio, em 2016. Se tornou presidente do grêmio estudantil e, após o assassinado da vereadora, se filiou ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).


Ele conta que aos poucos as conversas no seu quintal se tornaram oficinas de dança e cada vez mais jovens queriam participar. Mas foi quando o grupo se organizou para ir a uma passeata sobre intolerância religiosa que a organização começou a ganhar força. O padre Fábio de Melo compartilhou as fotos dos jovens nas redes sociais, dando visibilidade e fazendo com que muitas pessoas se interessassem e procurassem participar.


“A gente viu que não conseguiríamos dar conta da demanda de tantas pessoas que carecem de oferta cultural. Então decidimos só atender à juventude, porque achamos que ela tem que se tornar um corpo reprodutor de fazer política com a arte”, diz Kawan. Em 2019, o grupo conseguiu sala com espelho, realizou o próprio festival e foi para Brasília se apresentar com a cantora Duda Beat. “É sobre coragem para mudar, dançar para além dos horizontes, pautar cotidianamente que a arte e o corpo são ferramentas políticas de alcançar a juventude, de alertar, de se indignar com a situação atual e real do nosso território”, acrescenta.


Foto: Instagram/@culturazorj


Atualmente o grupo realiza suas atividades no Centro Esportivo Miécimo da Silva e segue atuando em diversos projetos, como a recente conscientização popular para a vacinação contra a Covid-19, além das aulas de dança e apresentações. Como resultado, vários jovens da organização criam perspectiva para estudar e entrar em universidades públicas, muitas vezes sendo os primeiros em suas famílias a ocuparem esses espaços.


“Para além disso, enquanto essa experiência acadêmica não chega, a gente também vê muita coletividade surgindo, muita perspectiva de quilombo. A ideia de que ninguém solta a mão de ninguém: vamos fazer arte. Se tá faltando figurino, vamos fazer juntos. Vamos pensar em uma maneira autossustentável. E isso é um pensamento coletivo que surge de quem chega no coletivo e se coloca nesse lugar de aluno, mas também de fazedor de arte popular”.


Existindo, produzindo e transformando o espaço


Não só os artistas e coletivos persistem em continuar existindo e fomentando a cultura nas margens da cidade. Os equipamentos culturais, apesar de receberem pouca valorização e investimento, são de extrema importância para suas comunidades. Além de teatros como o Arthur Azevedo e o Mário Lago, não se pode deixar de mencionar as Lonas Culturais. Dentre as 10 existentes no Rio de Janeiro, cinco estão presentes na Zona Oeste.


“As lonas culturais transformaram a perspectiva de fazer cultura em diversos aspectos. A inclusão cultural é o aspecto mais relevante, porque as comunidades passaram a ter acesso a shows que antes só podiam assistir nas grandes casas de show. Nós passamos a construir um circuito para trazer diversos grandes nomes da música popular brasileira, do teatro e da dança. Então houve uma revolução no sentido de inclusão cultural das comunidades onde as lonas foram implantadas”, conta Ives Macena, diretor da Lona Cultural Elza Osborne.


Na década de 1950, a mãe de Ives participava do Teatro Rural do Estudante, grupo de jovens que daria origem à atual Lona Cultural Elza Osborne. A organização teatral foi presenteada pela engenheira Elza Osborne com a construção de um Teatro de Arena. Em 1993, a Secretaria Municipal de Cultura da prefeitura do Rio de Janeiro possibilitou que o Teatro de Arena fosse o pioneiro na concretização do projeto de implantar Lonas Culturais pela cidade. Atualmente, os espaços literalmente cobertos por lonas são palco para diversas atividades, como shows, peças teatrais, oficinas, cursos, dentre outros.


“Mesmo com poucos espaços disponíveis pros agentes artísticos e culturais aqui da região, a gente tem uma produção cultural imensa. Contudo, até 2020, as verbas disponibilizadas eram muito aquém do que se necessitava para essa região florescer como deveria, para poder potencializar a produção cultural e dar sustentabilidade aos artistas e produtores. Então, eu acho que se a gente conseguir reverter esse quadro de poucos espaços e ter um investimento mais equânime e territorializado na cultura, a gente pode obter bons resultados”, reflete o diretor.


Foto: Extra Online


A rede de Lonas Culturais também foi a pioneira dentre os equipamentos culturais que deixaram de ser gerenciados por indicação política. Passaram a ser geridas inicialmente por reivindicações locais e em seguida através de licitações, em que se leva em conta a territorialidade. “A gente mostrou que uma organização da sociedade civil local era perfeitamente capaz de gestar e promover cultura no seu próprio território. Então as lonas são espaços estratégicos e primordiais no fomento cultural, no aspecto da inclusão, no aspecto da gestão e no aspecto de valorizar a cultura local de cada território, a cultura regional de onde estão assentadas”, defende o artista.


Por fim, Ives conta que a implantação da cultura popular dentro das Lonas fez com que os moradores da região deixassem de ter uma visão elitizada da cultura e da arte. Outra mudança que ele observa é um crescimento exponencial de grupos de teatro, de bandas, de grupos de dança. “A presença desse equipamento cultural traz esse poder de mobilizar as pessoas pra fazer e mostrar sua arte”.


Em 2020, o mundo inteiro foi assolado pela pandemia do novo coronavírus, e, com as medidas de distanciamento social, as áreas dentro da arte e cultura foram intensamente impactadas. Porém, apesar de toda a insegurança, tristeza e desalento gerados por esse momento, todos esses artistas, coletivos e equipamentos buscaram formas de se reinventar e continuar existindo e transformando os espaços onde atuam. Inclusive, muitos desses projetos tiveram que mudar o foco e reivindicar, nas palavras de Kawan, “comida no prato e vacina no braço”, conscientizando a comunidade e buscando levar esperança a partir da arte.


4 comentários:

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  2. Que matéria incrível! Ver o local aonde vivo ser visto me alegra! A arte e a cultura resistem!! 💖

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  3. Ótima reflexão! É muito triste perceber a desigualdade socioespacial posta em cena de maneira gritante. Como bem apresentado, a diferença é tão grande que muito se parece duas cidades distintas e, talvez, seja realmente esse o projeto.

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  4. Matéria linda e extremamente relevante a respeito de de algo tão importante e transformador como a Arte e A Cultura. Parabéns à autora, assim como aos entrevistados!

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