Moradoras "Da ponte pra lá" do Rio Macaé são as mais impactadas pela falta de abastecimento de água, esgotamento sanitário e drenagem adequados. Estudo da BRK aponta que 635,3 mil mulheres deixariam a condição de pobreza tendo acesso a serviços de qualidade.
Por Alice Arueira
Ponte da Barra. Foto: Bruno Campos |
No Brasil, 16% das pessoas não têm água tratada e 47% não têm acesso à rede de esgoto, de acordo com dados de 2018 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). A falta de saneamento é estrutural no país e afeta toda a sociedade, prejudicando a saúde, a educação, a renda das pessoas e o meio ambiente. Entretanto, o problema também é um indicativo da desigualdade de gênero, visto que na divisão sexual do trabalho as mulheres culturalmente são responsáveis pela gestão do lar e da família. Quando os serviços de saneamento faltam, são elas que buscam soluções para os problemas decorrentes da falta de água, esgotamento e drenagem no dia-a-dia.
"Da ponte pra lá"?
Em Macaé, a desigualdade no acesso aos serviços é visualmente perceptível, tendo um rio como marco geográfico. "Da ponte pra lá", ou “da ponte pra cá”, é a expressão usada pelos moradores em referência aos dois lados da cidade, cortados pelo rio Macaé e ligados pela Ponte da Barra, que leva o nome do primeiro bairro depois dela. Essa região, localizada entre o canal Campos Macaé e o mar, tem mais de dez bairros, incluindo o mais populoso da cidade, Lagomar, com cerca de 35 mil habitantes, segundos dados de 2018 do PEA Observação.
O crescimento desse lado de Macaé ocorreu principalmente a partir da década de 70, quando a Petrobras se instalou no município, atraindo muitos moradores de outros locais em busca de oportunidades de trabalho. A partir disso, essas localidades foram sendo ocupadas sem nenhum planejamento urbano, o que implica em moradias sem estrutura de saneamento básico.
“‘Do outro lado do rio’ até tem uma concepção de estar fora, como se estivesse fora de Macaé. Do outro lado do centro da cidade, de onde acontecem as decisões, da parte comercialmente mais forte, que cresceu e se desenvolveu depois, de forma bastante irregular”, pontua Guilherme Sardenberg, biólogo e servidor público da cidade.
Saneamento em Macaé: um panorama
Devido à ocupação acelerada nessa parte da cidade, sem fiscalização e planejamento, os bairros que surgiram até hoje enfrentam dificuldades em relação aos serviços de saneamento (coleta e tratamento de esgoto, coleta de lixo, abastecimento de água e drenagem pluvial), cada um com sua especificidade. Em 2012, a prefeitura assinou um contrato de 35 anos com a BRK Ambiental, uma empresa privada de saneamento básico. O acordo se deu na forma de uma Parceria-Público-Privada (PPP), onde o Poder Público financia uma empresa que presta serviço para o Estado. As obras de saneamento previstas no contrato se iniciaram na parte sul da cidade, onde estão os pontos turísticos, e atualmente estão sendo feitas em alguns bairros dessa região da cidade, como o Lagomar e o Engenho da Praia.
Já foram feitos investimentos anteriores ao contrato com a BRK, mas que não foram efetivos o suficiente para suprir a demanda de hoje, visto que moradores dos bairros relatam problemas como falta de água e a má qualidade dela, enchentes e inexistência de rede de esgoto em alguns locais. Guilherme Sardenberg, que tem experiência na Secretaria Municipal de Ambiente e Sustentabilidade, coloca os motivos dos investimentos realizados não terem sido satisfatórios a ponto de atenderem às necessidades desses bairros. Para ele, houve falta de um planejamento de longo prazo, que considerasse as habitações irregulares e o aumento da população das localidades ao longo do tempo. Pontua ainda problemas na administração, que não fiscaliza ocupações em áreas irregulares, de alagamento por exemplo, e sugere programas de habitação para amenizar o problema.
Um dos problemas mais críticos é a ausência do tratamento de esgoto, que em alguns bairros é coletado nas casas e despejado diretamente nos rios e no mar. Exemplo disso é o estado do Canal Campos-Macaé, construído durante 17 anos por pessoas escravizadas no século XIX. Sua proposta inicial era ligar as duas cidades, facilitando o transporte entre elas através dos seus 109 km de extensão, sendo o segundo canal artificial mais longo do mundo, de acordo com o Mapa de Cultura do Estado do Rio.
O canal é considerado patrimônio pelo INEPAC. Foto: Alice Arueira
Theo Arueira, estudante de biologia na UFRJ, pesquisa a ecologia e história do Canal em Macaé e discorre sobre o problema: “Houve um crescimento sem planejamento urbano e um dos problemas disso é a falta de saneamento, que converte-se em esgoto lançado no canal Campos-Macaé. O Lagomar, que é o bairro mais populoso de Macaé, só tem um sexto de seu esgoto tratado segundo dados de 2010. O restante é lançado em fossas e canais irregulares, ou seja, tudo é o canal Campos-Macaé”.
O estudante vê o canal como a ponta do iceberg de um problema sistêmico que é a falta de saneamento básico no Brasil, e associa a degradação do canal ao abandono por parte do poder público e à ocupação de suas margens dele, de forma desordenada. Esse processo começa com a chegada da estrada de ferro no município, que tornou o canal sem utilidade. “De todas as funções que poderíamos tirar dele, focamos em uma só: lançamento de esgoto. Começa a partir disso um processo de degradação historicamente marcado por uma desigualdade”, coloca Theo.
O estado atual do corpo hídrico também afeta os moradores de bairros próximos. Eliane, moradora do bairro Aeroporto, pelo qual o canal passa e ocupa parte do local, relata: “Dá muito mosquito, se não tiver uma limpeza constante, a gente não consegue nem sair na rua pela nuvem de mosquitos. Ele é um rio, é um desperdício muito grande, poderia ter uma limpeza”.
Mulheres são as mais afetadas
Embora atinjam toda a população, as questões ligadas ao saneamento impactam mais fortemente as mulheres. De acordo com um estudo da OXFAM, mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam 12,5 bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado. Essas atividades de trabalho envolvem cuidado dos filhos, de parentes e da casa. Na pandemia, a sobrecarga sobre as mulheres aumentou ainda mais, sem escolas abertas, desemprego e a necessidade de isolamento social.
Entre os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, está o de Água potável e Saneamento, que inclui a meta de “Até 2030, alcançar o acesso a saneamento e higiene adequados e equitativos para todos, e acabar com a defecação a céu aberto, com especial atenção para as necessidades das mulheres e meninas e daqueles em situação de vulnerabilidade”. Entretanto, a realidade ainda é bem diferente.
A BRK Ambiental realizou um estudo no país sobre mulheres e saneamento. A pesquisa apontou dados como o de que 1 em cada 4 mulheres ou não tinha acesso à água tratada ou não recebia água com regularidade em suas moradias. “A falta de água tratada estava concentrada nas mulheres mais jovens (entre 0 e 14 anos de idade), nas autodeclaradas pardas e indígenas, na população feminina de menor escolaridade e nas classes de renda mais pobres. Além da falta de acesso ao sistema de distribuição de água, a falta de regularidade no fornecimento de água também afeta a qualidade de vida da população”, registra o relatório.
Jéssica Barcelos é geóloga e pesquisa águas subterrâneas e o uso do solo. Ela morou no bairro Lagomar, em Macaé, e vivenciou as dificuldades da falta de saneamento na rotina das mulheres da localidade, incluindo a própria mãe. “Como elas são responsáveis por cuidar dos familiares, produzir alimento, limpar a casa, elas precisam de água. Se você não tem água encanada para cozinhar, lavar o alimento e limpar a casa, como que faz? Geralmente quem vai se preocupar com isso é a mulher”.
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“Minha mãe, de 88 anos, tem lesões nas pernas. Ela passa da hora do banho, tem que comprar comida pronta quando não tem água. Uma dificuldade também é lavar as roupas dela, ela tem incontinência urinária e preciso lavar seus lençóis e roupas. E tudo isso é muito difícil. Se eu que tenho uma idosa em casa é difícil, fico imaginando quem tem criança pequena”.
Outra consequência da falta de saneamento é o acúmulo de água em terrenos da região. No verão, lembra Helena, a água fica parada, virando foco de mosquitos que podem transmitir doenças. Ela conta que já teve chikungunya por conta desse problema. A estação também agrava o problema de abastecimento de água. No ano passado, as torneiras secaram por 15 dias seguidos.
“Quando compro caminhão pipa, tem que juntar as pessoas da rua. Porque eles [a empresa] querem vender o caminhão fechado, que é mais lucro pra eles. Se você pedir de emergência são 100 reais mil litros, se pedir agendado com mais pessoas tem que esperar, mas paga menos. Isso no final do mês vai fazer uma diferença no orçamento", diz a profissional de saúde, que acorda às duas horas da manhã ou deixa de dormir para abastecer as caixas d'água da casa, já que água só chega à noite. ,
Em outros bairros, as queixas diferem, mas também se relacionam à falta de saneamento adequado. Eliana, de 57 anos, mora no bairro Aeroporto, e conta que não tem muitas dificuldades em relação ao abastecimento, já que construiu uma cisterna em casa. Seu maior problema são os alagamentos na sua rua.
Já a geóloga Jéssica, 25 anos, morou no Lagomar, onde a água fornecida, na maior parte dos casos, não tem qualidade adequada. Ela lembra as dificuldades que a família enfrentava por conta do abastecimento impróprio. “Quando eu era criança, a pior coisa que poderia acontecer era beber a água e ficar doente, porque minha mãe precisava trabalhar e não podia faltar”. Ela enfatiza que o acesso ao saneamento resolveria metade dos problemas da família, e que sua experiência foi uma motivação para cursar geologia.
Jéssica lembra, ainda, que, além de gênero, os maiores impactados pela falta de saneamento adequado em Macaé têm cor, classe e território específicos. “Estamos falando do Lagomar, da Malvina, do Cehab. Por conta de serem pessoas mais empobrecidas, elas muitas vezes não vão ter condições de pedir um caminhão pipa. Como que essas mulheres fazem para lidar com isso?”, questiona.
O estudo da BRK mostrou que a falta de saneamento básico adequado afeta de variadas formas a vida das mulheres, como em sua saúde física e consequentemente sua produtividade no trabalho, além impactar seus estudos.
A pesquisadora e geóloga ainda pontua que mulheres em diferentes fases da vida serão prejudicadas pela falta de água, esgoto e drenagem adequados. “A ausência de saneamento básico influencia em todas as esferas de gênero, em todas as idades. Desde a criança que pode contrair alguma doença, a adolescente que tem a sua autoestima abalada, a mãe que tem a preocupação se a filha está consumindo a água, se está indo a escola, ou se ela vai conseguir lavar roupa, fazer comida, se vai sobrar dinheiro no final do mês. Porque ela tem que separar o dinheiro não só da luz, da alimentação, da internet, tem que separar o dinheiro da água também”.
O que poderia ser feito?
O Painel do Saneamento, organizado pela Trata Brasil, aponta quatro benefícios que são obtidos com o acesso a serviços de saneamento adequados. Entre eles, estão a saúde da população, produtividade, educação e uma maior valorização ambiental.
O estudo “Mulheres e saneamento” da BRK, concluiu que ter acesso a saneamento básico poderia retirar 635,3 mil mulheres da condição de pobreza. Isso aconteceria porque o acesso implica diretamente na produtividade das mulheres, e de acordo com o estudo a universalização teria mais impacto na vida de mulheres pobres do que entre os homens. Dentro desse grupo de mulheres, 3 em cada 4 seriam negras e 6 em cada 10 teriam até 29 anos. “Vale observar que a redução da pobreza não seria o único efeito para as gerações de jovens brasileiras. A universalização traria uma redução do atraso escolar e uma melhora no desempenho das mulheres nos estudos. Esses efeitos também impactariam sobre a produtividade das jovens brasileiras, elevando ainda mais o potencial de renda das mulheres brasileiras no futuro.”, coloca o estudo.
Macaé possui um Plano Municipal de Saneamento, que realiza um diagnóstico da situação dos bairros e prevê melhorias nas estruturas de saneamento, juntamente com a BRK, para os bairros do município. Entretanto, essas ações ainda não foram totalmente implementadas.
“O primeiro passo é fornecer o serviço. O saneamento já é um direito e todas as prefeituras deveriam arcar com isso. Então, se fazem o mínimo, que é fornecer o serviço de saneamento básico, já tira um peso muito grande das costas dessas mulheres que precisam se preocupar com várias situações e problemas que vão ser resultado dessa ausência de saneamento”, enfatiza Jéssica.
Ricardo Pereira Moreira, secretário da Secretaria Adjunta de Saneamento Básico em Macaé foi contatado via e-mail, telefone e WhatsApp para conceder mais respostas atualizadas sobre o cenário na cidade. Até o momento da publicação desta reportagem, não obtivemos retorno.
Uma tristeza
ResponderExcluirÓtimo trabalho da Alice... Uma narritiva que precisa ser ouvida urgentemente!
ResponderExcluirPrima, tô orgulhoso demais de vc, mas bem triste com a informação, uma pauta extremamente importante e necessária, aguardo por novas vindo de você
ResponderExcluirPor mais artigos como esses q mostram a realidade dos desafios q os brasileiros enfrentam no dia dia. Saneamento básico é saúde e esencial pra ter uma vida digna. Parabéns Alice Arueira e todos q contribuiram com essa reportagem.
ResponderExcluirParabéns, Alice, Belíssimo trabalho!
ResponderExcluirParabéns para a Alice e seu excelente trabalho apontando os desafios de uma boa parcela da população Macaense.
ResponderExcluirÓtima reportagem
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